Pablo Picasso dança em seu ateliê, em 1957. Foto: David Douglas Duncan
Em 34 anos dois meses e 17 dias, a contar do batizado do primeiro filho, nunca deixou de cumprimentá-la, muito menos apreciar, insistente, aqueles olhos de tigresa num ar de senhora respeitável cultivado por ela desde muito moça. Era o dia, finalmente, de fitá-los de perto como nunca antes.
Até chegar ali, sempre dosou gestos, cumprimentos e conveniência. Tinha certo pavor de exagerar na corte e entrar no território perigoso do enxerimento. Quando moço, era o medo de ser considerado um tarado mulherengo franco atirador desesperado qualquer. Depois, já gasto pelo tempo, de figurar como o velho babão patético e sem vergonha.
Havia chegado muito tarde naquele flerte, porque ela se casou muito cedo com um prático, ausente, embora amoroso. No começo, aquela ausência foi vista por ele, praticamente (sem trocadilho), como uma oportunidade. Depois percebeu que, por retidão moral ou apego à tradição, aquela esposa jamais olharia pro lado.
Apesar da solidão de quem vive em terra e tem um amor no mar, ela nunca cogitou um amante. Resolvia-se sozinha embaixo do chuveiro e guardava boa energia para as chegadas, depois das longas turnês no oceano, entre a desconfiança contínua contra o esposo esporádico e o desejo de quem está muito tempo arrasada pela saudade.
Ao apaixonado de plantão, restava uma proximidade fraterna e morna, que não passava de um oi na padaria, uma conversa mole ao passar pelo portão, em comentários insossos sobre o tempo, sobre o futebol, sobre as crianças, sobre as notícias, quem nasceu, quem morreu, quem ficou, quem mudou para nunca mais.
Ainda que nessa superfície sem sal, ele sempre fez toda questão do contato, sempre manteve a paciência em alta. Não se feria com o amor que ela depositava no marido e lamentou, de verdade, o dia em que o marítimo morreu num acidente não esclarecido. Caiu do navio e nunca mais foi visto. O corpo ficou perdido numa cidade submersa ou se converteu em comida de tubarão ou foi parar nas rochas de uma ilha da Martinica.
Por muito tempo, na vizinhança, os fofoqueiros insistiam que um dia o morto voltaria, engalado e cheiroso, como um Dom Sebastião, para rever mulher e filhos e informar que estava sim vivo e agora habitava em Amsterdam nos braços de uma ruiva natural 25 anos mais jovem do que ele.
A viúva enfrentou a perda e o falatório com dignidade e o homem que a esperava não pôde consolá-la de imediato, como ele sonhava quase todos os dias, naqueles anos todos. Almejava tanto a morte do marinheiro que, ao saber, sentiu-se tomado de remorso. Teve certeza de que a tragédia foi provocada pelas rezas do avesso dirigidas ao rival. Pedia que ocorresse enquanto ainda tivesse saúde e pudesse segurar a mulher da sua vida em seus braços livre de qualquer estorvo.
Só que nunca a vida é o que a gente espera nem acontece como a gente quer.
A saúde ia até bem. Ele estava na sala, diante da televisão, a mulher ao lado dele no dia em que soube da notícia trágica mais aguardada. Não festejou, porém olhou a companheira e já pensou na hora nos papéis do divórcio. Viviam em relativa paz e até pareciam se amar, o que não significou muita coisa a partir dali. Até assinar e acabar com tudo de uma vez, demoraram quase três anos. A briga foi dura e ele ficou quase sem nada no acordo mal feito ao qual se submeteu. Foda-se. Só queria ter liberdade para, finalmente, tentar com afinco o que sempre quis.
Ainda se resguardou por mais seis meses depois da separação para a primeira investida real na paixão antiga, tão antiga que nem ele acreditava mais que ainda pudesse guardá-la com algum viço. Mas estava lá, viva.
Depois de muitas conversas no mesmo portão de sempre, trocaram número de telefones pela primeira vez em décadas. Ela perguntou se ele usava WhatsApp. Envergonhado, ele informou que não sabia do que se tratava. Funcionário público, ainda era do tempo do fax e da máquina de escrever. Eram esses os instrumentos de comunicação quando pediu a aposentadoria no já esquecido 1994. O celular era um tijolinho, cujo recurso mais avançado era a lanterna. A mulher riu e com paciência explicou a novidade, recomendou a compra de um novo aparelho e que se inteirasse, que não estava morto, nem era peça de museu, ora porra.
Ele obedeceu e aprendeu rápido.
Falavam o dia todo. Em longos áudios e envios de vídeos de gato ou de bebês em situação de alguma gracinha. Riam juntos, quase sempre. Nem perceberam que era hora de avançar naquela conversa de crianças enrugadas. Então, ele, como um cavalheiro do século, fez o convite à dama. Cafona, pomposo, voz empostada.
_ Tá me estranhando?
Ele se assustou, porque, apesar de já ter alguma intimidade, não percebeu a tirada de sarro.
_ Topo, mas a gente sai pra dançar.
Gingado, rebolado, molejo, destreza nos pés, jogo de cintura, nada disso o homem tinha.
_ Claro, que a gente vai.
Chegou o dia. O dia de vê-la tão de perto que sentiria o músculo cardíaco dela retumbar contra ele.
Enquanto se preparava no pequeno apartamento de solteiro que agora morava, ele remoía o que ouviu na última vez que esteve pelo Bar do Alemão: não adianta, meu caro, velhos não se beijam.
Era uma verdade incontornável: velhos não se beijam.
Não tinha parado pra pensar, todavia percebeu justo naquela hora, pouco antes de encontrá-la. Nunca vi dois idosos entregues a saborear línguas e beber a saliva um do outro. Murmurou:
_ Velhos não se beijam.
No máximo, eram umas bitoquinhas, um roçar de leve de lábios, como se as bocas tivessem morrido ou se tornado um local de acesso proibido.
Entristeceu-se.
Os mais de setenta anos lhe abateram com a constatação de que o tempo leva para longe uma das maiores graças de amar. Teve medo de ficar frente a frente com a sua paquera, que, na cabeça dele, era a mesma mulher que o desassossegava na juventude, sem que a visse como a velha que, realmente, era.
Ficou na frente do espelho. Primeiro nu.
Era um idoso quase magro. A pança mole e pelancuda destoava um pouco do resto descarnado. Os peitos estavam caídos e já havia sobra de pele nas coxas. Havia perdido pelos e os que sobraram estavam alvos. O pescoço se mostrava meio seco e as mãos manchadas com pintas de sol. O saco pendia feito com papo de peru.
Agradeceu ainda ter alguma virilidade e se vestiu da melhor forma possível.
Arrematou a gola da camisa, olhou para si pela última vez antes de sair de casa, já dentro da roupa: agora parecia ter poucas rugas e não sustentava nenhuma careca. Ao contrário, tinha uma boa cabeleira acinzentada. Não estava mal para idade. Talvez as sobrancelhas fartas demais, as orelhas parecendo maiores, o nariz sem a simetria da juventude e os olhos opacos. Porém, o geral formava um conjunto razoável. Avaliou e quem sabe passasse por 65. Até 60. Era otimista.
No caminho, recordou quando ele a via de forma eventual, arrumada ao lado do marido viajante a caminho de alguma solenidade da Marinha Mercante. Uma beldade marrom, de cabelos encaracolados, fulgurantes. Estava sempre em vestidos que desenhavam as formas, as curvas de uma mãe ainda jovem, bonita, volumosa, desejável.
Ao rememorar tantos detalhes, concluiu que o tempo não a magoou em nada. Muito pelo contrário, os anos imprimiram a ela uma formosura enternecedora de avó com os mesmos olhos felinos de quem está no começo da vida. Sentiu o bicho da insegurança lhe roer e teve a sensação de que a proximidade atual o tinha transformado apenas em um melhor amigo tardio para dividir aqueles vídeos bestas de Internet e agora a companhia perfeita para o baile da saudade.
Não se deixou abater, não apesar de tudo.
Sem demora estava na frente à casa dela. Perfumado e penteado. Por muito pouco, poderia ter ganhado o adjetivo elegante. Levou um vaso com flores, anacrônico. Ficou com medo de parecer ridículo com rosas. Eram gerânios.
Cinco eternos minutos depois de bater na porta, ela abriu. A primeira reação foi rir do presente.
_ Um romântico a essa altura do campeonato. Vou guardar na cozinha e espero que morram antes que eu pare de rir. Se levo isso comigo, vou perder pelo salão.
Ficou sem graça e suou. Disfarçou bem com um trunfo.
_ aprendi a chamar o Uber. Minha filha me ensinou.
O carro chegou. Aconteceu como havia de ser: continuaram as conversas do dia a dia e tentaram bailar, o que não deu muito certo. Ele se atrapalhava nas próprias pernas e ela gargalhava da falta de jeito dele. Nunca a imaginou como uma exímia dançarina que ela era. Chegaram num acordo para dançar com poucos e vagarosos movimentos, sem firulas, ainda que com sintonia, dois pra lá, dois pra cá.
Era quase uma quando voltaram suados e descabelados, felizes. Na porta, algum constrangimento, mão na mão, silêncio.
Ela tomou a iniciativa.
Um beijo fluído, sincronizado, úmido, com línguas e vontade, mãos na nuca, olhos fechados, desejo no ventre e a respiração pesada de quem esperava por aquele momento.
Pararam aos poucos.
Ele segurou o rosto dela com ternura. Beijou-lhe a testa, o nariz e os lábios, de novo, de leve. Ela sorriu e devolveu com alguma timidez. Disse um adeus abafado perto da boca do homem e entrou com o coração aos pulos.
De sangue quente, o senhorzinho virou as costas e se pôs a caminhar, meio lento, no compasso da idade, o peito agora em brasa. Teve que concordar com o homem do Bar do Alemão, ele estava mais do que certo: de fato, velhos não se beijam.
E voltou pra casa, entre nuvens, no calor da madrugada, a sonhar, de novo, como se agora tivesse seus 20 anos.
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Ela era uma lembrança tola, de uma menina que invejou meu violão de brinquedo e me induziu na base do choro a vendê-lo sem mais nem menos sob o gracejo dos adultos. Recordo a sensação de derrota daquele dia dentro de um carro, na volta pra casa, sem saber argumentar. Fui somente levado pela corrente e morri um pouco de tristeza pelo meu instrumento. Muito longe do primeiro encontro na linha do tempo, estávamos ali, crescidos, de novo a negociar, agora algo que nem sabíamos direito o que era.
Tinha uns 20 e talvez ela fosse um ano mais jovem do que eu. Enfrentava a minha primeira greve na universidade e resolvi fugir da capital pra casa de uma tia-avó, que morava numa cidadezinha, tão velha quanto ela, às margens do Baixo Tocantins, onde à tarde me banhava nas águas barrentas e me arriscava em canoas mínimas e remos feitos de tábuas podres para chegar aos bancos de areia e conhecer o silêncio real cortado só pelo maresia e pios de pássaros. Era eu um rapagão espichado macilento e com tendência a paixões que me fulminavam a cada vez que as possibilidades se apresentavam.
E, ah, ela era uma das excelentes possibilidades. Introvertida ao extremo, usava uns óculos de lentes grossas, tinha uma pele marrom que em tudo combinava com os cabelos lisos castanhos quase bronze. Roliça, de canelas grossas e o sotaque nasal, cantando e de longas vogais, cheio de hum-huns e hem-hens da região. Todo amor que me cabia naquela idade de sonhos intactos estava ali em formosura e adiposidade. Eu, você, nós dois, já temos um passado, meu amor: um violão guardado, aquela flor e outras mumunhas mais…
Ela me reconheceu e tinha ouvido da própria mãe que o menino do violãozinho estava na cidade, o filho de Clarisse, o neto de Marita, sobrinho de Alzira. Me olhou incrédula, apesar de toda discrição, quando ficamos frente à frente. Mal disse um oi e emendamos uma conversa com primos menores em comum ao nosso redor e, quando demos por nós, estávamos já sozinhos no rumo do cais, onde os namorados iam fazer saliência às escondidas sem sequer perceber a malícia do momento.
Me falou de livros, de não gostar de Belém, do que viria a ser quando crescesse, de como a música se fez presente na vida dela, de nunca ter tido um namorado, do brinquedo que ela ainda possuía como relíquia. O mesmo da troca. E Trocamos? Não vendi? Sim, trocamos. Era a primeira traição da minha memória, porque recordo, como se fosse agora, os borós recebidos pela venda na minha mão enquanto retornava para casa desiludido com minha primeira perda consciente. Rimos bastante de vários temas e, para quem era tímida, ela estava falante e expansiva. E ficamos também em silêncio, por vezes, de olho no rio, com o vento no rosto, sem ter a menor ideia do que fazer.
Posso ter segurado as mãos dela e sentido o suor gelado da juventude? Talvez, porém é possível que seja só mais uma memória implantada pela minha imaginação. O mais provável é ter ficado ali parado na espera de que algo extraordinário ocorresse de forma natural e avassaladora e nos transformasse em dois amantes de cinema alumiados pela lua equatorial. E as mãos se procurassem na pouca luz, o meu corpo magro se chocasse com delicadeza ao corpo gordo dela e as bocas se encontrassem no escuro, famintas como são as bocas jovens, como deveria de ser. Era o que eu ingênuo ansiava, sem tanta interferência dos hormônios de então.
Ocorre que de onde menos se espera é de lá que não sai nada mesmo, como dizem. Ficou tarde, ela mencionou o horário e voltamos pelo mesmo caminho, de novo a sós, em passos de enamorados sem nem lembrar da praga dos pirralhos que estavam no início do nosso reencontro. Deixei-a na porta de casa, sem beijo, sem amasso, sem nada, com exceção da vontade e do arrependimento.
No outro dia, recebi um bilhete. Essa história faz tantos anos que as pessoas ainda escreviam mensagens em papéis e enviavam como segredos umas às outras, tal qual nossos ancestrais. A nota dizia em um letra redonda de quem fez caligrafia:
Quero te ver novo, no cais. Hoje, sete horas, logo depois da janta. Assinado: C. Beijo, beijo.
Estremeci, tive taquicardia. A criança que entregou não sabia ler ainda, de tão pequena que era, mas riu e entendeu que o escrito guardava alguma promessa e malícia. Vai embora, moleque. Sai daqui. O diabinho correu às gargalhadas, descalço e em ziguezague, com as mãos seguras no short frouxo pra não cair. Virou a esquina zimbado, uma flecha.
No horário previsto, vesti uma calça de sarja de largos bolsos, uma camiseta branca e minhas alpercatas de padre. Era meu uniforme na época. Nunca fui de ter muitas roupas. Em viagem menos ainda. Borrifei a alfazema da tia-avó. Escovei os dentes de novo antes de sair. Me olhei no espelho. Estava magro como um cachorro vadio, o cabelo sem corte, meu rosto tinha cicatrizes de acne antigas e recentes e novas espinha em flor e minha pele estava queimada de tanto sol por viver na rua naquelas férias imprevistas. Me achei mais feio do que de costume, odiei minhas unhas roídas, e pensei em como ela era bonita, tão diferente de mim. Bem cuidada e asseada e eu um promissor indigente. Será que me queria mesmo? Borboletas no estômago, grilos na cuca, segui rumo ao cais.
Antes de chegar na rua que deveria dobrar, a luz apagou.
A cidade inteira quase às escuras, porque o crepúsculo ainda permitia um fiozinho de dia. Ouvi o rugido dos moradores dentro das casas, numa comemoração às avessas. Quanto mais andava mais o breu tomava conta de tudo. Logo a noite se estabeleceu, incomodada apenas pelas raras chamas de vela nas janelas e algumas lamparinas a querosene no interior das moradas de portas abertas que via pelo caminho.
Embora sem enxergar quase nada, mantive o percurso em direção a Praça dos Notáveis, logo depois da igreja de São João Batista. Se chegasse lá seria fácil achar o cais. Bastava apontar para o farol em direção à rua interditada pela erosão. A ansiedade de chegar me guiou e alcancei o lugar sem muito esforço pra esperar em vão, como era previsível. Fiquei plantado, com alguma aflição e medo de visagens, e ainda ouvi gemidos abafados de um casal que se apertava na porta de um casarão colonial assombrado e o riso nervoso de um grupo de silhuetas que passava a brasa vermelha de um cigarro de mão em mão. Desisti uma hora depois de ter chegado. Nada da energia nos postes, nada de ela aparecer. Mofino, fui embora.
Mas, lá adiante, ao invés de virar à direita, errei e segui pelo lado oposto. Conforme avançava ouvia as conversas cochichadas dos nativos, a postos na beira das ruas, que esperavam que alguém, sabe deus quem, ligasse o motor a óleo do gerador central. Um zumbido de vozes respeitosas com a noite em estado bruto, que gerava um clima fantasmagórico ou de pesadelo quando se dorme com frio. E falavam de tudo e de todos, das velhas e novas histórias, das reais e das imaginadas, do desastre na estrada ontonti, da mulher que enlouqueceu abandonada pelo marido, tu viste?, do filho da vizinha da irmã de uma prima que agora estava no exterior, mas, ah!, do enforcado só achado pela família uma semana depois no galho do jambeiro, mas credo!, do homem que virava cobra nas bandas do sítio, mas quando já!, da mulher que vivia com dois maridos em paz e feliz, de Max, o estuprador de homens, de uma assalto que ocorrera num casarão da aldeia e tantos outros temas para passar a hora naquele marasmo ampliado pelo negrume.
Continuei a caminhada distraído pelo fuxico e os olhos já tinham se adaptado àquela altura. Sem perceber estava em rota de colisão com uma profusão de pequenas luzes, distantes, em movimento, como um exército vermelho de pirilampos. Parecia um congestionamento de veículos de brinquedo ou como se a poluição luminosa da urbe escorresse pela rua principal do município feito lava quente. Mas, junto com os pontos brilhantes, acompanhava uma melodia, também compacta, doce, quase infantil, crescente, vibrante, sentida, bela e triste, tal a trilha de uma festa para os mortos.
Hipnotizado, permaneci no mesmo passo até chegar a praça principal e perceber os vultos estáticos à espera do acontecimento. As lanternas encarnadas já eram mais visíveis e fortes e o ambiente foi tomado pela cantoria, agora nítida cantoria, acompanhada de bumbos e metais. Contritos, todos sabiam do espetáculo, só eu que não. Na pouca luz, percebia-se as almas postadas nas janelas, em pé nas portas, acocoradas no batente, sentadas no meio-fio, escoradas nas árvores e postes, trepadas nos bancos e na estátua do maestro Vicente, constituídas numa plateia consciente e expectante.
A rua foi tomada de vez e as luzes, antes indefinidas, eram candeias acesas nas mãos enrugadas de beatas devotadas que entoavam os hinos em coro agudo e afinado, como gatos apaixonados no telhado. Vinham fardadas de branco e vermelho e de escapulário no pescoço. No meio da multidão, também acompanhavam velhos de movimentos vacilantes, cada um de posse do seu próprio fogo. Homens mais jovens carregavam e tocavam os instrumentos de percussão. Os demais músicos dos sopros eram ilustres do lugar, perdidos no anonimato da vida sem eletricidade. Ainda assim reconheci, o mais célebre de todos, com sax de ouro, as costas curvadas pela idade, o indefectível chapeuzinho na cabeça e mancha escura na fronte. Era meu tio-avô a fazer o que lhe deu fama e título de mestre consagrado. Comandava a banda e rezava ao mesmo tempo, como num transe. E, quando vi aquele homem, como um fantasma concentrado a pagar sua pena, chorei, sem entender o porquê chorava.
Fui engolido pela procissão, invadido de pavor, euforia, alegria, pertencimento e comoção naquela cidadezinha que foi de minha avó em tempos que ninguém mais lembrava. Era São João, um céu de junho limpo enfeitado de constelações infinitas e, quando a multidão passou, segui sem lembrar do encontro e embebido pelo que a escuridão pariu naquela noite, longe do cais, longe de casa, longe de saber que era uma memória perpétua que acabara de ganhar depois de um encontro que nunca se concretizou, porque ela viajaria no dia seguinte e nem nos despediríamos, apesar de tentar vê-la no embarque sem sucesso.
Muitos anos depois, já na capital, nos esbarramos num shopping, num desses acasos que acontecem a toda hora em grandes metrópoles que são ainda pequenas províncias. Eu já não era o pós-adolescente esquálido perdido. Ela também havia mudado em quase tudo. Manteve os olhos amendoados e os dentes bem enfileirados. Era praticamente uma jovem senhora. Nos abraçamos e trocamos amenidades, como vai? por onde anda? E nosso pequeno violão? Etc, etc. Até que, por brincadeira e interesse honesto, trouxe à tona a falta de energia e o furo que levei depois do bilhete enviado por ela naquele ano. A mulher me olhou com atenção, o estrabismo da adolescência voltou levemente, e ficou muito séria, talvez também porque já fosse casada e aquilo não era mais assunto pertinente a nós. Ainda assim, soltou intrigada:
_ Nunca enviei bilhete nenhum.
Ri um riso da cor de um taperebá , mandei um esquece isso e, no ato, como uma peça solta de quebra-cabeça, me veio o menino às carreiras, de riso frouxo, depois de ter me entregado o papel.
Só então, entendi que o roteiro daquela lembrança esmaecida foi escrito só para que eu me deslumbrasse com as luzes da romaria e a sinfonia sobrenatural que tomou o blackout junino guardado cristalino no meu museu particular, invisível e em constante reforma.
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Tentávamos uma reconciliação com o pai celestial em outra freguesia depois de sermos expulsos da paróquia de perto de casa pela Inquisição. Tudo porque destruímos um dormitório durante um retiro religioso, na Baía do Sol. Ok, ok, é possível que as coisas tenham fugido um pouco do controle.
O começo daquela ópera-bufa foi banal: um saco de água com mijo.
A bomba biológica, jogada pelo telhado do menor dos quartos, atingiu as meninas em cheio. Saíram de camisola ensopadas e enojadas. Gritavam encharcadas de uréia. Os namorados se enfezaram e a noite que era de reza e Legião Urbana no violão entortou para uma guerra cega e, por muito pouco, mortal.
O ambiente tranquilo rápido se converteu em campo de batalha e o improviso e o ódio engendraram armas letais em pouquíssimo tempo. Surgiram rojões, sabe nosso senhor de onde, que viraram morteiros, garfos se encaixaram como perfeitos socos-ingleses, facas de mesas se tornaram belos punhais, estoques brotaram do nada, varas de bambu deram em boas lanças, mesas foram usadas como trincheiras. As camisas foram feitas de capuzes. Se houvesse imagens aéreas e cobertura ao vivo, seria um pequeno Carandiru. Ou a antiga Febem, já que os guerreiros eram quase todos quase infantes.
Algum namorado ofendido trancou à chave o dormitório onde eu estava até então sem saber de nada do que acontecia. O alarido lá fora me alertou. Foi uma excelente tática dele para impedir que possíveis aliados dos atiradores de urina saíssem para reforçar o exército rebelde lá fora. Encurralado, eu tive uma ótima ideia:
_ Vamos desmontar a fechadura.
Não funcionou, é óbvio. O canivete improvisado, que Fernandinho arrumou, não serviu e meu projeto de arrombador fracassou no nascedouro. As vozes do outro lado anunciaram, heróicas:
_ Saiam da frente que vamos arrombar na bicuda.
Não contavam que metade da parede viria ao chão. Achamos que era um desmoronamento total e morreríamos soterrados, mas que nada. Saímos dos escombros em meio à poeira prontos pra luta. A guerra estava no auge. Os dois grupos frente a frente a rugir. Ameaçavam-se, xingavam, discutiam, cutucavam-se. Ninguém se entendia mais e queriam resolver a contenda com sangue. Até que o Espanhol chegou.
_ Parem com essa porra!
Tinha saído até a Vila pra comprar mais comida na promessa de voltar rápido com a Toytota Bandeirante, na certeza de que lidava com bons rapazes, quase santos. Ledo engano, ledo engano.
O velhote missionário responsável pelo lugar e pelo passeio empunhou um 22 na escuridão. Sim, ele trazia um revólver todo enferrujado. Carecia de um banho de óleo Singer.
As lanças, punhais, pedras e paus foram largados no chão, um a um. Os batalhões se retiraram para seus nichos. Os homens de sangue nos olhos se espreitaram com rancor e baixaram as vistas. Eram garotos de novo. Terminava sem vítimas a longa noite de São Bartolomeu do Mosqueiro.
Corta para uma semana depois, tribunal da Santa Inquisição, bairro da Pedreira.
Os inquisidores reunidos para punir os pecadores da paróquia de forma exemplar. O chefe deles parecia um porco de granja de tão rosado e bem alimentado. Um paranaense seboso. Achei exagero, mas a pena do padre nos colocou na posição de proscritos.
_ Fora daqui, seus marginais, filhos da puta! Não voltem nunca mais.
A boca fala do que o coração está cheio, assim nos ensina São Matheus. Ainda bem que as fogueiras tinham ficado no passado, caso contrário…
O exílio
A Irmã A., o nome dela ainda eu me lembro, nem ligou para história que Simpson contou sobre dar um tempo da nossa antiga paróquia e procurar novos ares. Era uma mentira deslavada dele, evidentemente. Ela nos recebeu de abraços abertos meses depois daquela confusão. Nós éramos o que ela precisava, afinal. Já estava um pouco velha, mas com alguma energia para gastar na vã tentativa de consertar o mundo. Seríamos os braços daquela cabeça inquieta de aprendiz de Irmã Dulce. Tinha encucado em reabilitar um centro comunitário na Cremação e estava toda animada dentro das suas meias-calças. De pobreza e trabalho pesado sem ganhar porra nenhuma, a gente entendia bem. Topamos na hora.
Foi Simpson quem nos levou até ela — os irmãos Dinho e Zito e eu. Ele era nossa liderança natural, um dos rebeldes mais velhos do episódio da Guerra dos Meninos. Negro, mãos calejadas, fã de Bruce Lee e temente a deus. Todos nós órfãos e jogados ao léo depois de anos de bons serviços prestados na antiga casa de deus. Agora éramos exilados em outro bairro na busca de continuar como servos do senhor.
Chegamos cedo no domingo seguinte para inspecionar o lugar e encontramos o Frei e a Noviça, novos personagens, novos amigos. Ela franzina, de seus 18 anos, sorriso fácil, cabelos de mola, gestos discretos e um fiozinho de voz que denotava toda obediência à vida regrada como futura freira. Já ele era um franciscano beirando os 40 anos com suas alpercatas e o tau pendurado no pescoço. Ele me sorriu tão terno, que por pouco não seguro nas mãos dele e começo a oração de São Francisco. Era falante, comunicativo, baixinho, com dentes brancos, pele morena e entradas já aparentes.
_ Foi Deus quem colocou vocês no caminho da Irmã. Agora nosso projeto vai pra frente. Obrigado por virem. Trouxe uma merendinha pra mais tarde, lá no centro, hein? Eu mesmo fiz. Que tal?
Sorrimos. Que carinha simpático, grande coração.
O dia foi de aborrecimento. Simpson estava muito puto com tanto lixo e já xingava, em voz baixa a Irmã, enquanto Dinho coordenava o deixa-disso e virava umas tábuas apodrecidas e Zito dava uma de gerente sem fazer nada. No meu canto, eu me arrependia de ter aceitado estar ali com uma lata de entulho e emporcalhado por inteiro. A noviça e o frei só cochichavam apartados das coisas mundanas. Falavam de céu, anjos e bem-aventuranças, certeza! Seria assim por várias semanas e parecia que era um trabalho interminável.
Muito depois, num dos encontros na casa da Irmã, ela nos surpreendeu: partiria em poucos dias para o interior do Amazonas.
_ E nós?
_ Vocês continuem minha obra, meus filhos.
Nossa guia mor também comentou que a noviça não estava bem de saúde e se afastaria para repouso sem dar muitos detalhes.
Na última incursão ao maldito centro comunitário, fomos apenas Simpson, Dinho e eu. Zito estava de namoro com uma enfermeira muito gostosa e havia debandado para sempre.
Fizemos uma coleta pra comprar coca-la e pão com margarina e sentamos nos monturos de lixo com uma preguiça sem fim. Os pivetes da região começaram a nos espreitar do lado de fora e Simpson os chamou.
_ Chega aí, menor.
O mais velho era maior do que todos nós e estava de bermuda de sarja e sem camisa. Tinha dentes podres e olhar vazio de matador. Os outros eram uns pirralhos. O líder mandou a real:
_ Não adianta limpar que a gente vai trazer lixo pra cá de novo, pode cair fora.
Pedimos calma.
_ Calma o caralho.
Demos a coca e mais uns trocados pro grupelho e obedecemos o gentil convite pra nos retirar.
_ Não eras tu o Chuck Norris?
_ Tu não viste o tamanho dele? Tedoidé.
Fomos a pé pra casa da freira e ela já havia viajado. Havia uma mulher apenas, uma espécie de governanta, que nos ignorou. Contamos as moedas que sobraram e voltamos pra casa de ônibus, sem ânimo nenhum.
Era minha segunda tentativa de reinserção que começava a naufragar. A primeira foi numa paróquia em Castanhal a convite de um aspirante a padre conhecido nosso. Lá passamos um fim de semana para ajudar a organizar um evento de jovens católicos. Mas, no meio da noite, decidimos roubar a cozinha pra comer queijos, pães e hóstias e beber vinho bento. Ninguém reclamou no dia seguinte, mas nunca mais fomos convidados a voltar.
Estávamos agora sem rumo de novo na tentativa de não sucumbir à realidade nossa de cada dia. O grupo havia se dissolvido depois da guerra e era tarde tarde demais pra virar membro de gangue. As quadrilhas de pequenos bandoleiros estavam formadas e os territórios delimitados na Pedreira e Sacramenta. Cada um tinha um apelido amedrontador, uma arma branca e uma lata de spray pra pichar e demarcar seus domínios. Todos ferozes e corajosos, capazes de tudo. Nós só éramos os otários que iam pra missa por não se garantirem no soco nas porradas entre a Terror e a União ou a TP (Turma da Praça). Não queríamos entrar naquele conflito de bairros. Era muito mais violento e já tinham matado o Uga e o Descartável, um a paulada e o outro na bala. Morrer não estava nos nossos planos. Menos ainda no meu.
A Irmã abandonou a gente, aquela desgraçada, a noviça evaporou e o frei idem. Onde estariam agora?
O franciscano e a noviça poderiam oferecer ainda alguma luz. Eles tinham uma vida devotada a Cristo, estudavam a Bíblia, moravam no centro e estavam no caminho do bem. Eram muito melhores do que nós, tinham um futuro, uma vocação, um dom. Ele, então, um dia chegaria ao Vaticano, eu tinha certeza.
Ambos eram ainda uma esperança, aquela duplinha sem graça, mas cheia de boa vontade e de coração bom e boas caras de quem tomava café com leite Ninho de manhã e comia grandes bifes no almoço — se tinha uma coisa que a gente invejava era a geladeira dos missionários. A gente salivava com nossos olhos de crianças famintas a serem salvos pela divina providência.
O começo do fim
Voltamos, Simpson, Dinho e eu, à casa das religiosas. A governanta estava com um humor melhor e mais falante. Pediu ajuda para trocar um botijão de gás e mudar de lugar uma máquina de lavar. Assim o fizemos e engatamos uma conversa. Logo, o instinto humano de espalhar segredos saltou, quando Dinho disse, como quem não queria nada:
_ A Irmã era bem legal. Faz uma falta…
_ Só se for pra vocês. Aquilo era uma peste.
Simpson torceu a cabeça como um cachorro que tenta entender o que o dono fala. Dinho descansou o pé esquerdo em cima da panturrilha direita. Eu descruzei os braços e engoli cuspe.
_ Só tinha cara de santa. Vivia fazendo dessa casa um inferno. Ainda bem que foi embora. Que o diabo carregue, aquela vaca. E aquele lá? Um sonso, vagabundo, enganador com aquela cara de besta. Só tenho pena da menina mesmo. Dela eu gosto, gosto muito. Pobrezinha. Não merecia.
E assim a história começou a ser contada. A cada revelação a gente ficava mais mudo ainda, como se pudéssemos esticar o silêncio feito um elástico. Ela pôs a roupa pra lavar e falava aos berros por cima do barulho da máquina, sem nenhum pudor.
_ Vocês não sabem da missa metade! E tem mais…
Os olhos do Simpson pareciam mais esbugalhados do que o normal e Dinho repetia grunhidos de concordância a cada pausa da mulher, com cabeça de calango a sacudir pra cima e pra baixo. Eu não acreditava e a observava toda ensopada pelo serviço. Os braços balançantes e os peitos grandes marcavam a blusa molhada com mamilos escuros do tamanho de uma bolacha maria, que me perturbavam enquanto ela falava sem parar.
Soubemos por ela que a Irmã partiu não muito depois que flagrou o franciscano atracado na noviça no fundo do quintal. A calça de tergal arriada e a camisa desabotoada enquanto a cobria feito um galo velho. A velhota explodiu de ciúme e partiu pra cima dos dois com uma panela de pressão. O homem tentou argumentar depois de levar um golpe, mas a velhota foi inflexível. Não admitiria aquela safadeza embaixo do seu nariz! Fechou a cara depois de chorar uma noite toda e decidiu voltar para Manaus, não para o interior do Amazonas, como mentiu para nós.
Com a plateia dominada, a governanta despejou o restante do caso enquanto estendia uns cangulões no varal: o frei bem que tentou manter o caso com a noviça e prometeu rasgar a batina para sempre em prol daquela paixão. Queria porque queria casar.
_ ah, mano, ele achava que estava por cima da carne seca. Mas não era bem assim, não.
A mocinha recusou. Aquilo havia ido longe demais. O flagra havia sido um clamor do divino para ela largar o pecado e voltar ao braços de Jesus, seu verdadeiro e amado noivo. Argumentou, em lágrimas, de rosário na mão, enquanto o frei de joelhos lhe abraçava as pernas.
_ Ele quase mata ela.
Depois de muita insistência à amada, todas respondidas com não, o discípulo de São Francisco mostrou quem era, de fato, e a golpeou no pescoço com um caco de vidro que havia guardado no bolso para esta finalidade. Depois fugiu.
A adolescente perdeu muito sangue e estava agora internada fora de perigo de morte. O homem, dias depois, apareceu morto no claustro em que vivia após comer aos prantos três caixas de veneno de rato com pão. Não suportou o risco de ser preso e desmascarado. Culpa pelo que fez com a menina? Nenhuma.
_ Achei foi pouco. Querem almoçar? Hoje tem feijão.
_ Não, não, que isso. Já vamos.
Saíamos de fininho e não falamos durante a viagem de ônibus na volta pra casa. Era sábado de maio, muito quente, o sol varava as frestas das poucas árvores entre Batista Campos e a nossa baixada. O Jurunas-Conceição parecia um chocalho e, apesar de imundo, estava com poucos passageiros pra nossa sorte. Nosso grande líder passou a viagem quieto, olhos fixos na janela do coletivo, soturno. Ele desceu primeiro na Pedro Miranda com uma breve saudação. Dinho e eu seguimos até a próxima esquina, morávamos na mesma rua. Desci e olhei de longe a igreja onde costumávamos frequentar na Pedreira e me dei conta de que aquilo já não era pra mim.
_ A gente deveria ter comido aquele feijão. Tava cheirosão.
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AVISO: SE VOCÊ TEM SENSIBILIDADE A DESCRIÇÕES DE CENAS FORTES, NÃO LEIA ESTE TEXTO.
Cheguei na frente do prédio e o cheiro já era perceptível. Era o fim do caso e meu primeiro contato direto com essa cobertura. Havia dez dias, os jornais começaram a dar destaque pra história. Primeiro com a comunidade inteira mobilizada. Homens e mulheres saíram às buscas pelas matas, rios e igarapés da região. Uma vigília sofrida de gente pobre, de todas as idades, desde que as meninas sumiram, naquele vilarejo em Santa Izabel do Pará.
A mãe estampou a capa dos impressos quando o assunto ainda era um mistério. Os espreme-sai-sangue não perderiam o caso por nada nesse mundo: um duplo desaparecimento de crianças, uma mãe em desespero, uma comunidade assustada numa região rural e paupérrima, ao alcance de qualquer equipe de reportagem e da curiosidade mórbida da capital, que se alimentava do esdrúxulo, do bizarro e da sede por linchamentos, como na idade média, com direito a tochas e a gritos de horror.
Na imagem, a mulher sustentava olheiras profundas, a magreza pronunciada, rugas ainda mais evidentes de uma vida sem glória nenhuma, as mãos ossudas. Acho que não tinha mais do que 40 anos, mas, parecia uma centenária. O olhar fixo das mães que sabem mais do que todos sobre os próprios filhos e, o pior de tudo, têm consciência acerca da totalidade da angústia a que estão submersas. O registro fotográfico a capitou à beira de um igarapé a pousar, na corrente d’água, uma cuia que levava no interior uma vela acesa. Outras candeias já flutuavam no pequeno rio. Era noite alta e a luz das chamas forçava algo de fantasmagórico para a notícia, que já era trágica, independente de qualquer cenário. O jornalismo nunca decepciona quando o assunto é pisotear a dor alheia, principalmente, dos que não tem proteção nem força alguma para se defender ou revidar.
O gesto era um ritual, uma crendice, uma súplica. Há dias a mulher e os vizinhos faziam buscas por conta própria para achar as garotas de 7 e 10 anos. A polícia e demais autoridades se empenharam no caso, sobre tudo, pela repercussão enorme feita pela imprensa. Mas, enquanto a procura oficial se atinha ao horário comercial, a população e a família se mantinham incansáveis para solucionar o sumiço. Tanto que, como último recurso mais acessível, recorreram aos espíritos da floresta na empreitada. Os lumes eram um pedido de socorro às mães d’água para indicar onde estavam as benditas crianças. Afinal, as entidades que mandavam nas águas doces também eram mães e entenderiam aquela agonia. As iaras devolveriam as meninas? Teriam as pequenas entrado na mata para sempre ao fugir de um caipora? Estariam reféns de um encantado maligno, como o jurupari? Viraram comida para o cíclope mapinguari? Teriam sido puxadas para o fundo dos rios por um boto diabólico? Ou morrido afogadas numa brincadeira qualquer e levadas pela correnteza?
Todas essas hipóteses fora e dentro do mundo real foram levantadas e comentadas em cada sala e cozinha da pequena vila sob as lâmpadas incandescentes pelos que não achavam explicação nenhuma para o desaparecimento e mantinham a esperança de encontrá-las ainda sãs e a salvo de todo mal.
Até que prenderam um homem.
Um caboclo de pele clara de seus 50 anos, problemas com álcool, a fala difícil, olhos vermelhos, a musculatura bem definida, apesar de franzino, de quem trabalhou como braçal na juventude, cabelos encaracolados já nevados pela idade. Era vizinho da família das meninas. Alguém da vizinhança disse à polícia que elas foram vistas com ele pela última vez. Caminhavam em direção a uma trilha que daria em um furo de rio. O acusado negou e deu declarações confusas à imprensa sobre o que sabia. A prisão temporária foi transformada em preventiva. Estava agora à disposição da Justiça. Depois de uns dias no xadrez, ele confessou pra, em seguida, negar novamente e apresentar uma terceira versão.
Coincidência ou não, depois das velas no igarapé, não demorou, um pescador a bordo de uma canoa viu um amontoado de urubus às margens de um fio d’água de difícil acesso. As aves disputavam a comida entre si naquela lama, agora farta: a busca havia terminado.
A quilômetros dali, estava numa ronda normal para o caderno de Polícia e uma das tarefas era seguir para Superintência de Castanhal para apurar novidades sobre o caso. Desde o início das notícias, era a primeira vez que estava responsável por escrever sobre o caso. Assim, fomos pela BR e chegamos, Marcelo, o fotógrafo, e eu à sede da polícia. Por sorte, demos de cara com um investigador, que mastigava um pedaço de pão com manteiga e segurava um copo de café. Alguma novidade sobre as meninas? Ele apontou a direção com os beiços e informou sem interesse nenhum:
_ Parece que tem alguma coisa lá no IML, mas não sei direito.
Entramos no carro e partimos para o necrotério, que não era tão longe. Por sorte ou azar, chegamos primeiro ao local. De fora, o cheiro forte me já cegou. Era um edifício novo, recém inaugurado. Longe da ideia de morgue obscura e suja, era amplo e asseado, luminoso, como um palco bem construído para o espetáculo da morte. Entramos sem muita cerimônia. Vazio. Marcelo estranhou, de máquina em punho.
_ Vou procurar alguém pra pegar alguma informação.
Uma faxineira apareceu.
_ ah, moço, eles foram tudo pra rua por causa desse caso. Não sei o que foram fazer. Mas sei que chegou coisa aí.
A mulher foi embora e Marcelo voltou, logo em seguida. Pálido, os olhos verdes arregalados, o bigode molhado de suor, trêmulo, respiração ruim.
_ Eu vi.
_ O que?
_ Elas…
_ Onde?
_ Estão ali.
Ele apontou um vão, como um pátio aberto, sem cobertura para que luz solar iluminasse tudo, cuja entrada maior ficava por trás da recepção, se a memória não me falha. Percebi que havia outro acesso e inadvertidamente me dirigi até ele, enquanto ignorava meus sentidos.
Dei de cara com a cena: os dois pequenos cadáveres estirados no chão, negros de podridão e sedimentos do mangue, inchados pela umidade do tijoco. Desviei os olhos o mais rápido que pude, mas vi além do que precisava ver. Diferenciei a maior da menor. Um deles, o da mais jovem, estava sem a mão, que descobri depois, foi decepada por um golpe de facão ao se defender o agressor. E a outra tinha tinha um braço ressequido, roído pelos urubus e de cor mais clara por não ter sido totalmente enterrado. Nos rostos, já desfigurados pela decomposição, a dor da morte violenta e do desgosto da última hora contra quem cometeu aquele absurdo.
Meu café da manhã veio até a garganta e tive que ir para fora do prédio para respirar. Em seguida, as outras aves de rapina, meus colegas de imprensa, se aglomeraram diante do edifício, já fechado aos jornalistas nesse momento, depois que os responsáveis chegaram e perceberam a presença indesejada do meu parceiro fotógrafo. Corremos todos para a delegacia, agora para ouvir o delegado responsável pelo caso. Burocrático,ele confirmou o culpado, contou como o anônimo achou os corpos, reforçou manutenção da prisão e auto elogiou o próprio trabalho na liderança das investigações, aquela lengalenga toda de funcionário público.
Saímos depois da coletiva improvisada. Era a manchete do dia seguinte.
_ Tu não vais passar essas fotos pra edição, não é?
_Não. Fiz no impulso, só pra registro. Quer ver?
_ Porra, Marcelo.
Voltamos calados pra redação, em uma hora de viagem. Estava impregnado daquele fedor e da sensação de derrota, de perda, de algo espatifado dentro do prédio, dentro de mim, como um fracasso perpétuo, um dano que forja pinturas que jamais se apagam na cabeça dos que testemunham essas ruindades. Pensei nas velas acesas e na luz no rosto da mãe naquela fotografia. Como estaria agora? Teria alguma força? As entidades responderam, afinal, os apelos da mulher. Vi a pequeneza das notícias, no quase nada que era a função de relatar um dia horrível para preencher espaço num papel que, no dia seguinte, forraria carros de madame ou embrulharia peixe na feira. De como essa história seria mais uma a ser esquecida entre tantas piores que viriam a acontecer — o tempo, após tantos anos, provou que essa era uma previsão certeira.
Semanas depois o acusado pelas mortes foi encontrado morto na cela onde estava preso, em Americano. Deu no jornal: brutalizado feito um Cristo e enforcado como um Judas; suicidado, como diziam. A pena capital existia acima de qualquer lei e vinha a galope, diferente dos corredores da morte dos documentários americanos, com os condenados a aguardarem anos a sentença final. O inferno era aqui mesmo e o buraco era mais embaixo
O motorista do dia, ao meu lado, comentou o assunto:
_ Esse mereceu.
O hall iluminado veio como um flash, o mesmo mau cheiro, o mesmo engulho. Abri minha janela para respirar. O ar fervente da rua quase queima minha cara:
_ Calor do caralho… Tem uma apreensão na Marambaia. O dia parece que vai ser longo.
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Numa terça-feira de novembro, cheguei no trabalho puto da vida, larguei as coisas em cima da mesa e disse:
_ Não fico nessa merda mais um minuto se ela continuar!
Os dois me olharam já tensos aquela hora da manhã, cada qual diante do seu computador. Bragança arregalou os olhos pequenos, segurou as próprias mãos e com jeito de matuto de sempre, muito sério, despejou uma lealdade que eu não esperava:
_se tu fores, eu vou também.
Olhamos juntos para Portel, uma incógnita. Nem todos os sinais de estar até o pescoço na conspiração me convenciam de que ele permaneceria do mesmo lado da trincheira quando nos levantaríamos e partiríamos para morrer nas mãos dos inimigos. Mas não titubeou. Com as mãos da cintura, a boca cerrada e o nariz apontando o céu, como fazia ao exibir seus orgulhos, ele soltou:
_ meu amor, eu é que não vou ficar aqui sozinho com essa megera. Se vocês forem, eu vou também.
O pacto final estava mais do que selado e as consequências seriam extremas. Fosse para quem fosse. Subimos ao refeitório para acertar os discursos e abrir os mapas. O dia estava calmo, o que para nós não era rotina — o normal era o apocalipse. Os pássaros cantavam nas matas mais próximas e a grama molhada da chuva da noite anterior exalava um cheiro bom de clorofila. Os contínuos transitavam lerdos com papéis na mão, as serventes desfilavam com as bandejas de café, os motoristas coçavam o saco e ninguém desconfiava que ali iam três suicidas. Dentro do estabelecimento cheio de mesas vazias, fizemos os pedidos e sem demora meu telefone tocou. Era a Planaltina, nossa diretora.
_ Onde vocês estão?
Pela inflexão na voz e pela pergunta, a casa havia caído.
Respondi no automático
_ Viemos tomar um café.
_ Os três juntos?
_ Os três.
_ isso é comum? Saírem os três e deixarem a sala sozinha?!
_ Raramente, acontece. Só que…
Desligou.
Agora não tinha mais volta. Descemos calados e rápido rumo à guilhotina.
Ao abrir a porta, estavam as duas em pé, de braços cruzados. O rosto da diretora estava rosa choque (por isso não provoque!), o que fazia um belo contraste com seus olhos verde-mar. Um mar nada tranquilo, uma ressaca violenta de fogo, um tsunami pra cima de nós. Era loira, alta, porte de general germânico quando queria, e, justiça seja feita, quase nunca queria. Era uma mulher prática, fácil de lidar, que não tratava nada nem ninguém com arrivismo. Porém era a hora de mostrar quem mandava em quem.
_ então, é isso? Uma rebelião contra mim!?!?
Ninguém se pronunciou, então resolvi, responder sem gaguejar, sem vacilar, sem tremer, nem mijar nas calças, nem chorar. Saiu pouca coisa:
_ não é. Mas a situação está impossível.
– Falei que já estava resolvido! Ninguém precisava fazer isso. Cadê o respeito de vocês pelo trabalho? Vocês acham que tem alguém brincando? Vocês acham que viajei até aqui pra isso?
Piracicaba atrás da nossa alemã manteve os olhos saltados de sempre, como quem tem bócio, e da linha fina que compunha a boca entortou um sorriso quase invisível de ironia e degustação pela derrota que se desenhava pra nós. Ela estava na dianteira. Levou um petardo no peito ao ouvir da diretora:
_ Ela não vai ficar! É isso mesmo! Já á estava mais do que acordado. Ela mesmo pediu pra sair. E vocês, me vem com essa agora?
A mulher na retaguarda comprimiu os lábios e levantou o queixo, em sinal de dignidade, como se não estivesse tão preparada para saber do que supostamente já sabia. Pareceu que a decisão foi tomada ali na nossa frente ou que só então a ficha caiu para ela. Interrompi a diretora:
_ Posso falar?
Engoli a grossa bola de cuspe seco que se formava na minha boca e apertei a ponta da língua com os dentes para criar nova saliva e umedecer a fala. Respirei fundo, como quem vai pular do penhasco.
_ Você disse que teríamos a reunião ontem, não foi? Pois é. Esperamos o dia todo. Não houve nenhuma resposta. Ninguém falou mais nada. Lembra que liguei? Poderia ter dado algum retorno. A gente estava esperando…
_ Não precisava vocês fazerem isso. Já estava tudo acertado.
_ Ninguém tinha essa informação até hoje, aqui nessa sala.
_ Não vou admitir uma rebelião contra mim.
_ Não é rebelião. Admitindo ou não, eu não fico mais. Se ela fica, peço demissão neste momento.
Dei o passo final pra entrar na fogueira. O clima ficou pior.
Lá fora, aos invés de escurecer com nuvens de chuva, como acontece nos filmes de terror, alguém aumentou a potência do sol e as plantas quase morreram e os seres vivente foram buscar algum sombra. Planaltina perdeu o resto da paciência:
_ Quantas vezes vou ter que repetir: ela já pediu para ir embora! Vocês estão me ameaçando!
Três dias antes, a conversa com ela havia sido muito, muito, muito mais suave. Era um domingo ensolarado, céu azulzinho. O rio estava com seu verde escuro ressaltado pela luz do dia e as ruas tomadas de poeira que pintava de ocre tudo ao redor. Apanhei a chefa no aeroporto com o Carro das Bichas, como chamávamos o Uno vermelho que nos servia pra tudo. Estava sorridente, gentil e incomodada com o calor. Era a melhor pessoa da agência que poderia estar ali, naquele ponto crítico da nossa trajetória cheia de nós do roteiro prestes a fechar: contrato com o cliente no fim, rumores de mudanças na diretoria, insatisfações por todos os lados, temores e pressões por ir embora ou não da cidade e uma contenda declarada na equipe.
Planaltina deixou a família na metrópole e cruzou o país para saber o que estava a acontecer no trabalho, na cidade que vivíamos, todos forasteiros, isolada por rios e estradas quase intrafegáveis. Levei a mulher direto à melhor peixaria da região, onde Bragança e Portel já nos esperavam. Sentamos à mesa muito naturalmente, como se aquele encontro não fosse planejado pelo trio muito antes, com direito a desistências e a discussões sobre a pauta e sobre como introduzi-la sem parecermos meros fofoqueiros.
Horas antes, Portel havia pulado fora:
_ Não vou, bicho. Cheguei faz pouco tempo aqui. Vai ser complicado. É melhor tu falares sozinho.
_ Não vou fazer isso sozinho porra nenhuma. Ou vem todo mundo ou não vai ninguém.
_ Não tem como. Fala tu. Eles te respeitam.
_ Então, o plano fica por aqui. Se não for um acordo nosso, não tem negócio.
Frustrados, saímos todos. Fui para casa, encapetado, com o coração tomado de ódio. Descumpriria a promessa e faria sozinho sem que eles soubessem. Já estava decidido que seria melhor perder a cabeça do que aturar demandos. Menos de uma hora antes de ir para o aeroporto, Portel repensou e me avisou por telefone:
_ Tá bom, eu vou. Encontra com a gente lá peixaria.
_ Sério?
_ Sério.
_ Te amo.
_ Para, viado. Te arruma, caralho.
_ Combinado.
À mesa, Planaltina agora ouviu tudo de olhos arregalados e orelha em pé, entre um “meu deus” e outro. Ela não imaginava o nível de comando que existia em uma das principais contas da agência. Um contrato milionário em risco por causa de abuso verbal e assédio moral a rodo. Não fazia sentido desgastar a base operária, nós, ao ponto que estava. O trabalho em si já era problemático e com as dezenas de demandas de imprensa a serem respondidas por causa das queixas da população irada com o empreendimento. Fora os protestos e manifestações liderados por indígenas armados de arco, flecha, tacape e terçados, sem contar com carroceiros, oleiros e o todo mundo que todo dia encontra um motivo para levar todo tipo de reclamação ás televisões locais.
_ Teve um dia que ela simplesmente disse que era para permanecer olhando nos olhos dela enquanto ela falava. Já era muito tarde, quase dez da noite. O expediente tinha começado às sete da manhã e já entrava pelas dez da noite.
_ E no dia que ela perguntou se eu sabia o que era clipping? Eu trabalho há anos com assessoria. Ela vive subestimando todo mundo. Trata a gente como se a gente fosse estagiário. Só na patada.
_ Nem vou falar como é a relação comigo, porque pode parecer que estou com mania de perseguição. Mas…
Planaltina, então, quis ouvir Portel, o mais novo na equipe, o que tinha proximidade com a denunciada. Ardilosa, como uma boa investigadora, a diretora percebeu que ali, justo naquele elo, poderia extrair uma versão mais próxima da realidade ou desmascarar uma possível farsa.
Ele tomou um gole de bebida e molhou os lábios, antes de falar.
_ È isto. A relação com ela é péssima. A gente vive sob tensão. É tudo isso que eles disseram e mais um pouco, de verdade. Não é exagero.
Era o que faltava para dar crédito às denúncias. A diretora estava convencida, enfim. Havia percebido o erro na escolha do comando e precisava agir para desfazer o equívoco, restituir a paz interna na equipe e manter todo mundo firme na produção e no atendimento daquela plantação de pepino com abacaxi que tínhamos que lidar todo santo dia.
Abrandamos a conversa, afinal, enfiamos a bandeirinha no território inimigo, a primeira até a vitória final. Destroçamos o resto de tucunaré e brindamos entre sorrisos. Respirei com algum alívio, crente que a batalha estava vencida.
Mas não era bem assim.
Na segunda-feira, Piracicaba voltou de viagem e desapareceu de nossas vistas junto com a diretora, o que causou apreensão de imediato.
_ Puta que o pariu. Ela estava fingindo. Agora a outra deve estar fazendo a nossa caveira. Amanhã é demissão sumária, na certa. Não vou dar esse gostinho pra essa filha da puta. Saio antes.
Só no outro dia, com o chamado durante nosso café de confabulação, que a reunião iniciou. Agora estávamos todos à mesa. Entre uma pausa e outra, a medir cada movimento e palavra para não provocar mais ondas elétricas de rancor e fúria. Sentia-se a respiração um do outro e baba amarga se formando no canto da boca de cada um.
_ Eu posso falar?
Planaltina se virou, expressão grave, os olhos fixo, cheia de autoridade, dirigida a quem pediu a autorização:
_ Não. Quem vai falar agora são eles. Vamos evitar que a situação piore.
Perdeu mais uma otária, pensei e sorri com alguma sutileza.
Bragança foi o primeiro da sessão. Estava abalado. Ele se pronunciou, enquanto piscava e mexia muito as mãos numa ponderação que parecia mais uma justificativa do que uma acusação. Concentrou no conflito entre eu, o mais antigo na equipe, e a gerente. A fala era atropelada e nervosa, angustiada. Ele se sacudia um pouco enquanto se expressava, como uma convulsão em câmera lenta. A mensagem nas entrelinhas, na linguagem gestual, não deixava dúvida: estávamos desesperados, sim.
Portel foi, de novo, o fiel da balança. Para ele, a situação era mais difícil. Enquanto Bragança e eu, já havíamos entrado em conflito direto, um menos do que o outro, em algum momento as bombas estouraram em cima de nós. Já com Portel era o oposto. Recém-chegado como ela, com perfil organizado e profissional semelhante ao da nova funcionária, criou-se entre os dois uma simpatia de colegas, que ele cuidou que parecesse uma reserva de lealdade. Carregou bolsa, deu dicas de moda, ensinou onde comprar tudo mais barato, tentou enturmá-la e conversar sobre a oferta de homens descomprometidos na cidade, sempre em tom de galhofa, leve, ultra simpático, bem humorado e respeitoso na medida certa:
_ Olha, mana, tem cada cafuçu, viu? Um mais gostoso que o outro.
Ela ria.
Muito estratégico, Portel a ajudou a arrumar um bonito apartamento no mesmo prédio que o dele. Pareciam grandes amigos e era o que me deixava aflito. Será que é um aliado ou um agente duplo?, eu me perguntava. Na hora de abrir a boca na frente da nossa algoz, ele deu um sorriso de canto de boca e olhou para ela com certa ternura, como um pai olha a uma filha que deu um passo errado. Prendi a respiração e cerrei os olhos. Esse patife vai dar pra trás agora!
Dois segundos de silêncio.
Com doçura, ele contou os pecados da amiga e toda a escuridão que ela trazia ao ambiente de trabalho com seu humor horrendo, suas ordens enviesadas e sem sentido, suas perseguições gratuitas, seus ralhos de avó enfezada, suas tentativas de humilhações e toda insurgência que esse comportamento tóxico provocava em cada um. Quando ele terminou de desfiar seu rosário, a mulher estava de olhos baixos, entre pensativa e arrependida. Uma ré ciente da sentença.
Fim da guerra. Vitória do baixíssimo clero.
Estipulou-se mais um mês para a saída da gerente, sem substituto nos meses seguintes. Teríamos agora que dar conta sozinhos e nos autogerir como anarquistas perdidos no meio do mato sem nenhum cachorro. Ela se encastelou em um hotel para preparar o retorno.
No último dia, apareceu no escritório para limpar as gavetas. Entrou em silêncio, recolheu os trecos e disse qualquer coisa, como um pedido de desculpas, abafado por um nó na garganta que expulsou à força as lágrimas dos olhos imensos que ela tinha. Passou por mim com o andar pesado e os cabelos esvoaçantes de uma hippie atemporal, que talvez tivesse realmente sido antes da transformação que o mundo corporativo e a necessidade de sobrevivência impunham a ela ao longo dos anos.
Chegara naquela cidade perdida da Amazônia brasileira para gerir a comunicação de uma mega obra. A ambição era chegar à diretoria de atendimento e a um salário ainda mais gordo. Voltava agora para o interior de São Paulo sem emprego por causa de três jornalistas nativos ignorantes e inferiores ao seu valoroso currículo cujas maiores glórias era produção em um programa de auditório com um apresentador idoso e crianças cantoras e uma companhia de saneamento no interior do país. Pôs o cabelo pra trás da orelha, ajeitou a bolsa e bateu a porta, os olhos para baixo.
Chamou o táxi percorreu o novo bairro cheio de casinhas iguais, passou pela estrada de acesso com asfalto recente e movimento intenso de um povoado em crescimento, seguiu pelo centro da cidade já caótico de tanta gente, atingiu a rodovia até o aeroporto onde pegou o avião e, aparentemente, levou apenas poeira e amargura daquela experiência curta.
Era o fim de uma temporada em que ela se apresentou como a uma excelente vilã. Quando saiu de vez, nos entreolhamos, mais tristes do que aliviados.
Bragança levantou e abriu para olhar o carro partir, talvez para se certificar de que era o fim de verdade. Portel, com a mania de limpeza, foi arrumar mesa de trabalho.
Eram umas quatro da tarde, peguei um café e fui olhar o resto do dia. Um gole e o vapor embaçou meus óculos. Ainda tinha muito serviço para tocar no chão de fábrica até o final do expediente.
Será que ainda estaríamos ali, juntos, no ano seguinte? Entrei de volta para fazer o que precisava ser feito.
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Chovia. Das chuvas de Belém em janeiro e ela me beijou minutos antes de eu encarar o temporal para atravessar a cidade dentro de um combi velha do transporte clandestino para voltar pra casa. O guarda-chuva emprestado não impediu que a tempestade me ensopasse. Trovões, relâmpagos, coração disparado e a certeza de que fiz uma grande merda. Enfim, demos o passo sem retorno possível. Quatro anos depois daquele pacto debaixo d’água, a mulher me olhou entre uma garfada e outra de macarrão do Spoleto. Nem sinal daquela primeira noite ou de nada — os olhos vazios. Anunciou com tranquilidade e sem emoção aparente: não quero mais.
Uns seis anos antes, eu a tinha visto pela primeira vez. Entrou de jeans, blusinha de alça e rabo de cavalo em uma das salas da universidade para uma oficina de roteiro de cinema ou algo do tipo. Caloura, morena, minúscula. Me impressionou com os olhos enormes, o sorriso torto e voz profunda e grave demais para uma moça tão pequena. Trocamos algumas palavras e telefone. Ficou no ar uma tensão sexual que eu não compreendia muito bem aos 23 anos.
Aos poucos, aquele primeiro encontro se desdobrou em dezenas de conversas e criamos vínculos de forma rápida e definitiva, se é que existe algo definitivo aos vinte e poucos anos. Descobríamos relações mútuas, coincidência, semelhanças, diferenças. Nos ajudávamos, ríamos de tudo e ouvíamos com atenção as dores um do outro. Eu, um pobre morador da periferia da cidade aspirante a uma profissão elitizada e sem nenhuma representatividade para mim naquele começo a procura de um lugar ao sol. Ela, uma interiorana órfã de pai com muita vontade de abraçar as oportunidades que lhe chegassem às suas pequenas e frágeis mãos. Dois perdidos, embora ela tivesse muito mais fé no futuro do que eu, sempre descrente e pessimista.
Nasceu ali uma ligação tão grande ao ponto de passarmos noites inteiras ao telefone, numa época em que o ponto alto da comunicação não eram redes sociais ou aplicativos de mensagens, mas, sim promoções de operadoras de telefonia para falar de graça pelo celular durante o fim de semana inteiro. Era o que fazíamos. Já são sete da manhã, precisamos desligar, vamos dormir, um dizia para outro.
Vivemos uma amizade fecunda, de muita identificação, confidências e trocas emocionais e intelectuais. Sem mais o apelo juvenil do sexo do começo, pelo menos, naquela fase. Afinal, namorava de portão uma mocinha colega de escola de minhas irmãs e contei a ela.
Estava tudo muito bem, mas as ligações rarearam aos poucos até cessarem, sem que eu entendesse muito bem o motivo. Os horários na universidade mudaram, arrumamos o tão sonhado trabalho como estudantes para ter pelo menos o que comer no período das aulas e o trocado para o ônibus, cada um foi lidar com a própria vida em um tempo de urgências, exaustão física, leituras inúteis e sacrifícios para terminar o curso de Jornalismo.
Ela sumiu. Ou eu sumi. Nem sei mais.
Só sei que emergiu, tempos depois, como a namorada de W., como o chamarei aqui. Numa tarde qualquer, saíram do estágio e se beijaram em frente a um prédio residencial na Almirante Barroso, assim ele mesmo me contou em frente da casa dele, em uma das minhas muitas visitas inesperadas. Decidiram os dois repetir a dose outras vezes e namorar.
Fico feliz por vocês, ela é muito gente fina, disse eu, na ocasião. Sem ironia, sem inveja, sem segundas intenções ou abalos.
De fato, estava contente. Os dois combinavam muito. Ela e ele foram para mim uns achados naqueles anos de tantas descobertas. Duas pessoas que reuniam tudo que eu cria como qualidades. W., então, nem se fala. Era uma mente brilhante. Um escritor em potencial, um músico em formação, um chargista de futuro, uma criatividade infinda. Doce, triste, ácido, amargo e amoroso, de cabelos longos e expressão taciturna de um trovador medieval de bonitos olhos melancólicos, o que escondiam uma fragilidade de menino e um enorme coração sensível. Ainda por cima, cheio de referências que que não tinha por ter nascido em família menos pobre do que eu, viver em outros ambientes e ter estudado em melhores escolas.
Não demorou para ficarmos amigos muito próximos. Enquanto a gente voltava de ônibus juntos da universidade para a Pedreira, os laços se firmaram à base de piadas, tiradas, sacadas, afinidades e um descontentamento, um pouco de revolta e certa tristeza com o mundo, coisas que nos colocavam no mesmo nível de energia, na mesma direção.
Não demorou, passei a ir em rodízios de pizza baratos com W. (quando minha barriga começou a despontar) e a frequentar a casa dele em aniversários e efemérides muito divertidas repletas de comida deliciosa que a mãe dele fazia. Como meu amigo tinha computador e eu não, cansei de chegar à tarde, do nada, logo após o almoço, e pedir para usar a máquina para fazer minhas tarefas de universitário. Ele muito solícito, muito educado, abria as portas de par em par. Lá, partilhamos de uma amizade real, que duraria muito mais do que eu poderia crer e renderia um trabalho de conclusão de curso com nota excelente e elogios rasgados da banca examinadora.
Quando passou a namorá-la, minha amizade com W. já ia longe e forte ao ponto de sermos confidentes. Já meu contato com ela havia esmorecido pela distância, porém, tomou um novo fôlego, afinal, passamos a conviver de novo por causa do nosso homem em comum. Não era raro ver nós três juntos e, logo, fiquei na incômoda posição de confidente dos dois. Em separado, cada um com suas angústias e queixas me relatava o que não ia muito bem na relação. Bom ouvinte e bom amigo que era, driblava a saia justa de agente duplo com sigilo absoluto sobre o que me diziam. Nada chegava ao outro por meio de mim. Eu era um túmulo.
Com o tempo, ela e eu retomamos a amizade tão fortemente quanto antes, a que havia sido suspensa naquele começo que já ia longe. Falávamos com frequência outra vez, quase todo dia, e até saíamos só nós dois, sem a presença de W. Estávamos unidos de novo. Para ter noção dessa proximidade, para chegar à casa do namorado, ela precisava descer em uma parada na Avenida Doutor Freitas e andar uns cinco quarteirões até o destino final. Quase no início do caminho, tinha a minha a casa e por tantas vezes fui voluntariamente escoltá-la até lá para garantir que chegasse segura. Uma gentileza que fazia com muito gosto e nenhum interesse direto.
Era para ela que contava minhas decepções, rejeições, meus segredos e exibia os intestinos da minha relação da época, que acabou deteriorada entre mentiras e pequenas e grandes traições. Dela, eu recebia palavras doces, compreensão e lições, que muito me serviram. Era afeto puro de uma amiga valiosa em níveis que nunca atingira antes.
O estalo de que estava tudo muito estranho aconteceu no Cine Líbero Luxardo, quase no Natal. Fomos em trio assistir A felicidade não se compra e ocupamos, de forma natural, as poltronas. Ela ficou na do meio, entre mim e W., muito amigos que éramos. Durante a exibição, ela segurou minha mão e trocamos algum carinho com leves apertos mútuos de dedo quase o filme todo. Pela primeira vez, senti alguma malícia no gesto e, na mesma hora, me repreendi.
Então, percebi que estava numa armadilha, num beco sem saída. Quando as luzes acenderam, prometi a mim que me manteria o mais longe possível da situação, numa distância segura, sem deixar de pensar que o amor nasce quase sempre nas piores brechas possíveis, como flores no asfalto.
Mas, esse tipo de promessa é difícil de cumprir. Quem viveu sabe.
Como previra, numa noite qualquer, ela me ligou. Chorava desconsolada, de soluçar, trêmula, a voz sufocada. Não dava mais, terminamos, ela lamentou pelo telefone. Minutos depois, meu aparelho tocou de novo. Atendi. E era ele. O mesmo tom de voz triste, a mesma informação, dessa vez sem lágrimas ou soluços: não dava mais, ela terminou. Nas duas consultas, fui que o que um bom amigo deve ser entreguei meu melhor conselho aos dois, nas duas chamadas. Pequenas variações nas frases, mas o sentido era o mesmo:
– Parem de frescura, que amanhã vocês estão juntos de novo. Logo se acertam. E se não se acertarem, paciência. Segue o baile. Ninguém morre de amor faz, mais ou menos, uns cem anos.
Não voltaram, também como eu imaginei e torci cheio de remorso. Depois da notícia, vislumbrei que, talvez, uns seis meses depois, ela e eu poderíamos nos olhar com amor e desejo sem culpas e nos permitir extravasar o que estava reprimido e andava por nossa cabeça já havia algum tempo. Esperaria o tempo que fosse, como um Florentino Ariza, até que cessasse o julgamento social e pudéssemos gozar daquele sentimento que já me corroía.
Menos de um mês depois, ela me convidou para conhecer a sua casa, em um condomínio popular, na Augusto Montenegro, na entrada de Icoaraci. A desculpa eu nem me lembro, porém, aceitei e corri até lá depois de um dia extenuante de trabalho no jornal.
Cheguei com nuvens pretas sob a cabeça, minhas pernas tremiam, como se estivessem prestes a cometer um crime e havia uma pressão no peito que não passava, que acharia facilmente ser um princípio de infarto, caso ocorresse agora na idade que tenho. Quando abriu a porta e pulou no meu pescoço para me cumprimentar com seu pouco mais de um metro e meio, percebi que não havia mais volta. Estava de roupas caseiras: short, camiseta, sem maquiagem, sem perfume, natural, talvez para não admitir a si que esperava aquele evento há muito tempo, como eu também ansiava. Fizemos o que mais sabíamos fazer quando juntos: conversamos por horas.
Quando deu quase onze da noite, sem jeito e coragem para fazer nada, decidi que estava tarde e pedi para que ela me deixasse no térreo pra gente se despedir. Pegou o guarda-chuva preto da mãe e me entregou. Não vai adoecer, por favor, essas coisas que diz toda mulher. Descemos com o toró no auge. O vento fazia os vãos dos blocos de prédios rugirem, como uma plateia que me julgava e xingava naquele desfecho. Olhei a tempestade e o chão da garagem quase inundado a molhar os meus sapatos e ela tomou a iniciativa diante da minha reticência.
Um beijo, o barulho da chuva, o silêncio.
Tudo caiu como uma bomba. Mas, só viria a explodir quase um mês depois, quando ela, por iniciativa própria e sem esperar como eu havia pedido insistentemente, contou a W. o que havia acontecido. A consciência dele sobre o que houve resultou na conversa mais constrangedora que jamais tive com alguém. Uma confissão de culpa diante do meu imaculado melhor amigo, agora ferido pelo que todos consideraram uma puta sacanagem da minha parte, traição imperdoável.
Eram visíveis a decepção e o ódio no rosto, nos punhos, na tensão de W., na fala travada e baixa, tudo barrado graças a uma natureza não-violenta. Gerou um transtorno tão grande nele, que o recém transmutado em ex-amigo ferido na alma invocou heterônimos criados por ele mesmo para fazer o que não conseguia por si: me esculhambar, me xingar e expor minha perfídia e minha personalidade controversa naquele episódio machadiano/rodrigueano que nos marcou naquele início de 2004. Foi uma perda imensa pra mim.
O fim da história já antecipei. Acabou de forma melancólica numa praça de alimentação de shopping com um casal apático e exaurido de amores, duas pessoas que se quiseram tanto e nunca mais seriam amigos na vida, como chegaram a ser antes, e os três personagens fadados a seguirem o próprio caminho, cada um na sua, até que esse enredo fosse enterrado de vez, perdesse o sentido e estivesse quase esquecido como um livro velho em um depósito de memórias batidas no fundo de um baú antigo.
Até que o juvenil Vitão apareceu para lembrar que ninguém está imune diante do impulso que faz nos faz humanos e a vida é imprevisível.
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Primeiro o Amor não existiu, como é o normal para todas as coisas, numa época em que nem gente havia.
Nesse tempo, as feras se viam e apenas se saciavam por instinto e por muitos invernos esse ritual persistiu, mesmo quando já havia gente ávida por aí.
De cima da pedra mais alta, o Tédio observava, curioso aquela dança e arregalava os olhos com aqueles uivos desesperados.
Viu tantas vezes até que cansou da repetição enfadonha da mecânica do corpo. Já estava quase sem graça, quando ele deu de gerar o Amor pra ver se o negócio melhorava.
Filho do prazer com a apatia, nasceu mudo, sem choro, os olhos enormes e clarividentes. Um menino gordo de pele noturna, substantivo, porém, abstrato.
Não mamou em peito nenhum, brotou feito flor sem pedir licença. Cresceu solto a correr sozinho nas matas e beiras de rios, encorpou com suspiros alheios e o barro que comia das paredes das cavernas onde se abrigava e se escondia de todos por um sem número de séculos.
Gozou de adolescência isolada e arredia, com raiva de tudo sem entender o mundo nem a que veio.
Até que saiu de lá, já um rapagão, pra respirar novos ares e tomar sol nas suas enormes bochechas.
E todos que o viram sorriram de orelha a orelha, como quem vê um velho conhecido ou uma novidade absoluta, que era deveras desde que surgiu.
Deram a ele um espelho e brilhantes. Tosquiaram-lhe os cachos e cobriram suas vergonhas com roupas vistosas. Calçaram-lhe ele sapatos, coisa que nunca havia usado. Nunca ganhou arco nem flechas, como diriam anos depois.
Então, o pobre viu pela primeira vez o próprio reflexo e se chocou com a beleza refletida. Até então não sabia, não se percebia, ninguém o avisara, mas era lindo.
E não só: dourado, perfumado, galante, leve, viril, forte, esbelto, envolvente, insinuante, charmoso, hábil, labioso, estupefaciente, perfeito.
Uma brasa, mora?
Um único defeito preocupava a bela criatura: precisava ser visto de longe para parecer ainda mais vistoso, porque quanto mais perto a imagem se esvaziava, derretia, embaçava, desfocava, embaralhava, confundia-se, descoloria, perdia brilho, ganhava chuviscos, chiados, zumbidos, fantasmas, virava outra coisa, muitas vezes sumia.
E o Amor sofria. Não por ele, não pela natureza fugidia da qual era feito, mas das tantas queixas dos que tentavam se aproximar e se decepcionavam, frustravam-se e, na sequência vilanizam o coitado; Embucetava-se de tantos dedos apontados na sua fuça. Sabia que a cada ofensa ficava mais horrendo aos olhos do ofensor, antes muito encantados com a formosura e a perfeição do Amor. A luz da aura dele agora bruxuleava com o fracasso de público e de crítica; amuava-se, castigava-se por não poder se exibir pleno, em resolução 4k, a qualquer ângulo, a qualquer distância, vaidoso e tolo que era também.
Daí a incompreensão, o desgosto, o imponderável e o disse-me-disse enfearam o Amor.
Foi uma fase terrível. De aflição, ansiedade, acne na cara, cabelo mal penteado, hálito azedo, compulsão e vício. Nada lhe caia bem. Nada lhe fazia bem. Nada lhe pertencia. Nenhum lugar era seu. Tudo lhe escapava.
De completo, virou meio termo.
Empalideceu.
Enferrujou.
Envelheceu.
Encolheu.
Apodreceu.
Fedeu.
Passou a frequentar salões de beleza, casas de estética, clínicas de cirurgia plástica, casas de suingue, feiras livres pra se perder na multidão. Tentou de tudo pra disfarçar: cremes, perucas, procedimentos para repuxar a cara, roupas de grife, cursos de maquiagem, terapia, becos escuros, casas abandonadas, raves lisérgicas, ioga, acupuntura, crack, crossfit, chá verde, caminhadas ao luar, aulas de dança de salão, canto gregoriano, deepweb.
Vivia a pensar sobre ser o que não era e até sobre ser o que, de fato, era e querer deixar de sê-lo. Já não se reconhecia, não se enxergava, preferia que não lhe dirigisse a palavra e se automutilava com giletes sem fio nas madrugadas, os dentes rangidos, os olhos vidrados e os travesseiros encharcados de água e sal.
Infeliz, deu um tempo, uma sumida. Saiu do Instagram, desinstalou o Facebook, desistiu de vez do Tinder e todos os outros similares. De novo, não pôs a cara na rua. Não quero ver ninguém, não me liguem, digam que morri, dizia.
Queria que o esquecessem e quase conseguiu por certo tempo.
Já quase ninguém falava dele e a maioria voltou ao se entreter pelo alívio do corpo. Só uns poucos perceberam o desaparecimento repentino.
Não demorou nada para que esses gatos pingados, os desesperados de sempre, urrassem de dor pela perda e cometessem em ato contínuo o gesto tresloucado por pensarem que, naquela altura, o Amor havia partido cedo demais.
Numa noite de lua nova qualquer, um desses angustiados, sem aguentar mais de tanto vazio, arrancou o músculo cardíaco. E por não ter a quem entregar, deu a mulher com quem, estranhamente, dormia junto seguidas vezes. Foi o modo que encontrou de homenagear aquela espécie de santo, o tal Amor, que não se sabia notícia havia tempos.
Embora houvesse muitos outros órgãos para extirpar — um pâncreas já carcomido, um rim empedrado, um fígado esterilizado, um cérebro confuso, pulmões esfumaçados, um apêndice inútil, um estômago cheio de borboletas — , o incauto preferiu o mais inquieto, óbvio que era.
Ensopado de sangue e enzimas, com as veias e artérias dependuradas, era aquele presente um troço horroroso nas mãos da mulher desavisada.
De uma vez só, ao olhar e sentir a massa sanguinolenta e inquieta, ela se repugnou e se encantou com o gesto.
Horas mais tarde, em mesa de bar, comentou com as amigas, deu detalhes da cena.
Ouviram tudo com horror, frisson, incredulidade e inveja.
Agora queriam também alguém que lhe entregasse um coração como ritual ao desconhecido, como era mesmo o nome dele…? Amor.
Quase obsessivas, desejam o mimo ainda fresco, sangrado e pulsante. Se possível, com laço de fita.
E como o caso não era de gênero, já que homens e mulheres possuíam a mesma anatomia, pretendentes, namorados, noivos e maridos passaram a desejar o mesmo de seus pares quando a história se espalhou. Movimento igual ocorreu entre as mulheres que formavam pares com outras mulheres e homens que formavam pares com outros homens e os que formavam com ambos os sexos por terem nascidos com esse superpoder.
Quase todo mundo foi atendido, de uma forma ou de outra, e aquilo, antes repulsivo, tornou-se rotina para mais tarde ser repetido à exaustão pelo povaréu.
Todos espalhavam aos quatro cantos que recebiam e entregavam corações pelo Amor, enquanto ele permanecia isolado na caverna, a mesma em que cresceu com o bucho cheio de argila.
Só foi descobrir que era idolatrado de novo quando a multidão o arrancou do exílio e o carregou nos braços para exibi-lo por aí, numa primavera já distante na memória. Quem descobriu o endereço não se sabe. Mas o levaram arrastado em cada sala de estar e quarto de família e de casa de tolerância, em cada salão de festa, pátios de escolas, missas, templos, terreiros, em ruas largas e estreitas, em esquinas e becos do país. E todos queriam vê-lo, tocá-lo, beijá-lo, rasgar suas roupas.
Era o amor agora um tipo de rockstar, um excêntrico que provocava reações alucinada em quem se feria no peito para provar que ele existia.
É homem, é mulher, é deus, é o diabo, é um anjo, é um monstro que devora corações no café da manhã.
De tudo diziam dele.
Levado por estranhos, rodou de norte a sul e ignorou os traumas de outrora, de tão acostumado que estava à badalação em torno de si.
Mas, dado à melancolia e alguma frescura, quis se recolher novamente nas grutas imemoriais, de novo as dos tempos das feras, das insônias e do esquecimento.
Exaurido da porra toda, teve asco da fama e amaldiçoou os falsos amigos que lhe construíram a nova imagem pop e lucraram com ela até não poder mais. Destruiu fotos, livros, fitas k-7, discos de vinil, filmes em VHS. Violento, magoado, avesso do sentimento, oceano sem água, evaporou de novo e jogou o celular fora dessa vez.
Houve falências, suicídios, queixas nas delegacias, chamadas públicas em jornais, matérias de jornais com fãs desconsolados pela perda do ídolo.
Ele nem aí. Foda-se.
Trancafiado ficou.
Pura culpa e autocomiseração.
Como se deixou levar? Sabia a resposta, o cínico.
Deixou a poeira baixar e o mundo girar. Quando já não o lembravam mais como astro, mexeu nas economias dos tempos de vacas gordas e abriu um bar no centro histórico decadente da cidade para atender velhos que arrancaram o coração por ele, lá em 1972, e, na atualidade, choram sozinhos em cima de copos de cachaça
Quando não hà movimento, coloca Belchior na vitrola e observa detrás do balcão o salão vazio.
Nas folgas, sai de quando em vez por aí, na esperança de achar cerimônias em que extirpem órgãos pulsantes em louvor a ele mesmo.
Sabe que o ritual é brutal e pouca gente acredita que ainda haja quem se dê a esse trabalho.
Desuso.
Over.
Cafona.
Nas noites mais escuras, o amor passeia num Chevette azul 89/90 pra ver seu nome em neons de motéis e em cartas jogadas no lixo ou ouvi-lo em velhas canções de programas de rádio. Para em frente de baladas, mercearias e pontos de ônibus para olhar as pessoas absortas.
Volta calado. Não sabe dizer se sente saudade dos velhos tempos ou agradece a condição de decadência sem nenhuma elegância.
Tranca as portas, apaga a luz, Deita-se nu e sozinho, toda noite, à espera de que o sono venha ou a morte o leve de vez.
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Arregalou e limpou os olhos antes do sol aparecer. Sentiu no final do espinhaço a dor de todo dia. Amaldiçoou, como sempre. Puxou a perna direita, depois a esquerda e acondicionou as duas na posição certa, na beira do colchão encardido. Apoiou-se nos cotovelos. Esvaziou os intestinos inchados de gás. Arrumou mais força e colocou o primeiro pé, o destro, no chão, e, em seguida, o canhoto e ampliou a audição para ouvir o galo se pronunciar. Em vão.
Ergueu-se devagar. Foi ao fogão. Duas bocas precárias. Gordura velha, claras de ovo tostadas, grãos de arroz petrificados, manchas escuras, jornais velhos chamuscados, dezenas de fósforos incendiados e formigas formavam um tapete vivo em cima da máquina e faziam qualquer um desacreditar que ali se cozinhava. Pegou o bule de alumínio amassado e encheu de água, acendeu a fraca chama azul e a observou por um tempo antes de colocar o recipiente para iniciar a fervura.
Em seguida, mexeu na tramela e abriu a porta da cozinha, pouco antes de enfiar a mão no saco de farelo. O quintal estava tomado por lixo, erva daninha e mato ainda curto e exalava um cheiro ácido e vivo, com um igapó que se tornou esgoto a céu aberto. Lançou os grãos e os bichos vieram em alvoroço, como se já estivessem acordados devido uma insônia incurável. O sol começava a aparecer e homem ficou ali a olhar as galinhas e os pintos muito magros comerem sob o lilás da quase manhã.
Pensou no galo. Teria virado canja, se perguntou, embora soubesse que o animal era muito velho para servir como refeição. Se bem que os tempos estavam difíceis. Depois de tanto tempo de chuva e um período mais longo ainda de estio, tudo tinha primeiro mofado, enferrujado, apodrecido, amolecido, virado lama para mais tarde encarquilhar, queimar, secar, tornar pó, envelhecer ou morrer. Sobraram poucos animais. Plantas, quase nenhuma. Só agora iniciava o surgimento do que seria um matagal. A antiga horta ainda era ruína e ele, se acreditasse em deuses, levantaria as mãos aos céus para agradecer nunca ter faltado comida nos anos de castigo.
O galo era um herói a resistir, o guardião vencedor, testemunha desde os primeiros dias difíceis. Era estranho o silêncio de manhãzinha depois de tanto tempo marcado pelo esganiçar da ave, empenhada como um funcionário padrão em um canto que, conforme o tempo passava, soava cada vez mais sem afinação e triste, porém vivo como um berro de neném.
Despertou-se da contemplação inútil e foi adicionar o pó de café. Havia dez anos repetia os mesmos gestos, numa obsessão em fazer tudo exatamente igual. Buscou a xícara de sempre. Sentou-se à mesa na posição exata de ontem, de anteontem, de antes de anteontem. Apertou o joelho direito, girou a colher cinco vezes para a esquerda dentro do líquido fumegante e bebeu de um gole grande para queimar a goela e lhe acordar de vez.
Revisou os últimos minutos: arregalar os olhos, limpá-los, as pernas na posição, pé ante pé no assoalho, erguer-se, fogão, olhar o fogo, água no bule, comida para as galinhas, café sem açúcar, nenhuma dança; par, menos ainda. Quando sorveu o líquido quente todo até a última gota, deixou-se abater. Tanto quanto na vez em que a mulher deixou aquela casa. A repetição, para ele, era sinal de que as engrenagens estavam funcionando, que o mundo não parava e a rotina (a própria vida) estava assegurada, em movimento.
Mudanças nunca foram bons presságios, sempre pensou assim.
Desde que os cabelos começaram a embranquecer, tudo degringolou. Não demorou a aposentadoria veio, logo depois da perda de parte do movimento da mão esquerda. Apareceu a colite, a magreza, o descuido, o estorvo. Sem demora, Judith se foi. O único filho partiu para Holanda sem nunca mais dar notícias. A casa se tornou imensa, silenciosa, escura e suja, como uma toca de ratos sem ratos. O cachorro, após 18 anos, já cego, quase sem andar, morreu sem pêlos nem forças, cheio de tremores e ganidos apavorantes. Os vizinhos quase todos venderam as casas para corretores na época dos temporais eternos.
Na seca, as construtoras escavaram tudo ao redor. Tratores e caminhões gigantes trabalharam meses a fio sem parar um só instante, deixando no ar o barulho dos motores, os berros dos peões, a poeira, o gosto do cimento na garganta e a fumaça de óleo diesel nos pulmões. Renitente, ele não saiu. Recusou até o fim as propostas das moças de terninhos, dos homens de gravata. Quando a oferta chegou a três vezes o valor daquele imóvel combalido, foi a vez das incorporadoras desistirem dele. Quando os poucos resistentes achavam que multiplicariam apartamentos em prédios com jeito de pombais, o maquinário e os operários sumiram depois que mais uma bolha especulativa estourou em um país em que ninguém das redondezas sabia pronunciar o nome repetido no noticiário, tampouco compreendia com clareza a relação que o fenômeno financeiro tinha com suas vidas ordinárias.
Em meio ao cenário pós-guerra, sem batalha nenhuma, ele mantinha o rigor de repetir o dia-a-dia que havia lhe sobrado. Acordava às cinco, almoçava às onze, tirava a sesta a uma da tarde, lia o maltratado livro de Contos Reunidos do Rubem às quatro e se entretinha com saudades apodrecidas até o sono chegar. Sentia falta até da cor mostarda das máquinas pesadas que não o deixavam dormir no período de fazer buracos inimagináveis nos terrenos devastados. Ressentia-se de não lembrar mais o rosto da jovem mulher que se foi. Por que levar as fotos? A recordação que sobrou era apenas era de uma velha, de rosto gretado, a cabeleira rala e o olhar oco, igual à noite anterior ao dia em que saiu porta afora.
O abatimento daquele homem velho estava exposto a quem quer que fosse se houvesse alguém ao redor para perceber. No entanto, se existisse, de fato, uma platéia, no máximo, o que faria era rir se todos soubessem que todo o pesar da hora tinha a ridícula ligação com um canto de galo omitido, não cantado ou, no extremo mais provável, na morte de uma ave vulgar e tão velha quanto seu único lamentador.
Permaneceu com a xícara sem firmeza na mão ruim. Levantou-se e foi ao ver quintal mais uma vez. O mal cheiro agora contraiu o estômago forrado por cafeína e quase engulhou. Engoliu o cuspe grosso do enjôo e olhou na direção do cercado de tábuas sem consistência e caibros agrestes, onde ele cria que o galo se empoleirava todo dia para cantar. Nada. Nem sequer uma pena. Só silêncio e ruína.
Virou as costas e entrou em casa não sem antes trancar a porta frágil. Os 20 anos de fracasso parecem ter dobrado de tamanho e lhe curvaram mais o espinhaço. Os passos lentos e arrastados ganharam o corredor cujos escombros atrapalhavam a passagem. Tentou chutar sem êxito a bola Dente de leite já murcha do filho extraviado. Arredou uma banda de sapato que fora da mulher. Quanto mais se aproximava do que havia sido a sala de estar, mais era tomado pelo breu do abandono, cortado apenas pelas linhas finas de poeira desenhadas pela luz de frestas ocasionais de janelas trancadas.
Atingiu o sofá de três lugares com certa dificuldade. Deitou-se de barriga para cima, as mãos postas uma na outra sobre o peito. Acomodou-se entre trapos. Fechou os olhos, sentiu a dor percorrer o corpo, de novo, lamentou com sinceridade e fervor de uma oração de fanático. De vergonha, as poucas visagens que ali ainda habitavam saíram para outras sombras. E ele, em sons semelhantes ao do galo em dias de rotina inalterada, rendeu-se e fez o que deveria ter sido feito desde que a derrota começou a se alastrar em sua existência: chorou o choro convulso dos meninos que se perdem da mãe.
Vinicius de Moraes e Pablo Neruda (Foto: Pedro de Moraes)
Antes de o mundo acabar, existiam livros e leitores e, anterior a eles, havia os escritores, dos quais os que mais gostava eram os poetas. Tão diversos quanto sensíveis, antenas do mundo, malditos, irresistíveis e trágicos, quase todos. Os melhores, pelo menos.
Às vezes, entrava escondidos nas tocas esfumaçadas onde se escondiam e se exibiam entre si. Só para espiá-los. A maioria nem contava que havia contraído a poesia ainda na infância e se fingia (fingidores!) de meros declamadores. Por timidez ou para não desgraçar a família de imensa vergonha. Não era fácil e havia muito preconceito. Prefiro um filho ladrão a um poeta, berravam os pais, enquanto os pobres rebentos roubavam para comer e pagar o aluguel dos quartinhos fétidos onde habitavam e escreviam versos que não eram lidos por ninguém.
Era um tempo difícil e eles só se tornavam dignos de revelação e veneração depois de terem vivido em sofrimento e partido dali para o limbo merecido. Provavelmente na Grécia mítica. Lá eram recebidos pelos sábios e pelas ninfas para, enfim, gozarem a felicidade plena. Do outro lado, recebiam liras de ouro para inspirar novos poetas, estes no mundo físico a padecer nesse ciclo sem fim.
É claro que nem todos eram desgraçados. Tinham os ricaços e que usavam a influência para disseminar a própria palavra. Viviam em lindas casas, tinham belas mulheres e belos homens, eram reverenciados por reis e presidentes e abençoados com o maior regozijo de todos: a reverência de leitores fiéis. Endinheirados e endinheiradas que viveram muito bem. Mas, quase nenhum desses valia alguma coisa. Somente os que, em algum momento, caíram em malogro. Seja pela língua ou pelo fígado. Estão aí Neruda e Vinícius que não me deixam mentir.
Nestas andanças, nesses lugares não sabidos, nessas tocas de devassidão e sentimento do mundo, nessas cavernas de declamação e busca do belo, entrei certa vez com um propósito muito bem definido, pouco antes do último selo do apocalipse ser rompido e a peste ressurgir para devastar a humanidade quase de vez.
O primeiro que matei era o condutor da récita. Um belo lusitano de tez cuidada e descansada, ampla careca e barba pontuda muito bem escanhoada. Parecia que havia saído de uma pintura renascentista com seus belos olhos castanhos de brilho intenso e longos cílios. Quando o sangue extravasou pela goela, ele não conseguiu dar seguimento à leitura de um poema de Fernando Pessoa, escrito havia mais de 90 anos. Engasgou-se com o líquido vermelho e caiu no chão em estrebucho. Tinha uma dicção perfeita, voz límpida como o som de uma pequena cachoeira na floresta. Morreu entalado com um heterônimo.
Todos me olharam e beberam as bebidas de cima das mesas com certa fleuma e muita reprovação. Guardei a arma constrangido por ter interrompido a tertúlia de forma tão abrupta. Ao lado do cadáver, o tocador pegou o violão para continuar a noite e cantou uma triste canção com dedilhados dissonantes. Poupei-o. Gosto de músicos e ele não escrevia nada. De instrumento na mão, agradeceu-me com o polegar pra cima. Desse jeito, com ênclise, pois estávamos no berço e tradição de grandes versistas.
Lá atrás uma mocinha, de seus vinte anos, começou a ler outro poema. Em um espanhol da Galícia. Usava roupas escuras e tinha uma franja muito curta. É muito provável que ela mesma tenha cortado para transparecer a intensidade emocional peculiar de uma alma delicada e/ou um transtorno de personalidade ou o cabeleireiro dela era um iniciante sem nenhum talento pra coisa. Gorda e muito firme nas convicções, o texto falava sobre os novos tempos, identitário, incendiário, bonito, verdadeiro, pujante. Acertei um único projétil no pescoço, creio que na segunda estrofe da terceira página. Caiu de olhos abertos por cima de um jovem estudante de Letras da Universidade do Porto, que teve muita dificuldade para se livrar do corpanzil. Antes de morrer, chamou-me misógino. Paciência.
Não houve tempo para comoção, porque o andarilho da cidade invadiu o ambiente e foi aclamado. Muitos aplausos. Entrou capenga de uma perna, os cabelos longos, o nariz adunco e o rosto engelhado da Bruxa da Branca de Neve. Era levemente corcunda e trouxe uma pilha de livros artesanais, produzidos, editados e montados por ele mesmo. Pediu licença para ler três poemas, sem métrica, mas com boas rimas e humor. Enquanto arrumava a cabeleira que lhe cobria os olhos, mencionou que já estava bem da hepatite C, sem saber que havia contraído o vírus, que naquela altura era quase desconhecido de todos e havia ceifado a vida de poucos mundo afora.
O velho trovador fez muito esforço para enxergar as palavrinhas no papel e a leitura era ruim, atravancada pela falta de dentes e pela pressa. Terminou com uma canção sobre uma amante, um policial e seu vício em drogas ilícitas. Saiu pela porta por onde entrou depois de informar que estava tarde e ainda precisaria andar muito. A madrugada estava fria e ele seguiu rumo para lugar nenhum com seu cheiro de benzina, tabaco e suor. Não me deu a honra de poupá-lo. Poetas miseráveis são sempre os melhores, elogiei em silêncio.
Dois jovens brasileiros pediram licença para apresentar uma canção autoral feita por um deles. Os dois tocavam a guitarra acústica muito bem. O compositor tinha um estilo todo próprio com o instrumento. Balançava-se todo e provocava efeito visual de um suingue verdadeiro. Mas, era só impressão. Ele era branco, como todos ali, exceto eu. O parceiro, mais sanguíneo e baixinho, parecia mandar na relação. Dava comandos para que o estreante no espaço se mostrasse melhor ao público.
O primeiro abati com uma porrada com um contrabaixo que estava na área de apresentação e o segundo correu porta afora, apavorado. Não fez diferença. Soube que quis ir embora do país, traumatizado, porém, os pais fizeram uma gorda transferência e o orientaram a ficar na Europa devido ao início da pandemia e ao medo de contágio nos aeroportos.
Depois que ele saiu, uma senhora leu um poema belíssimo de uma autora lusitana, que me foge o nome agora, logo depois que músico do Brasil parou de gemer e respirar. Olhei com curiosidade para ela. Lia com pausas certeiras, clareza e harmonia. Parecia uma antiga professora de Literatura ou uma das senhoras que via na missa das sete, antes da celebração das crianças, na minha infância quase esquecida.
Ela me encarou muito sisuda e combativa. Tu não tens coragem!, fuzilou-me. Acreditei que o desafio fazia parte da leitura dramática. A bala lhe fez um furo pequeno na blusa clara que foi manchando lentamente. Permaneceu sentada e os olhos foram ficando baços até perder a vitalidade e ela recair sutilmente com a cabeça para frente, muito elegante.
O rapper mais famoso daquele sítio interrompeu o fim de agonia com uma crítica social bem colocada. Ritmo e poesia, postura e atitude. Era um homem alto, jovem, de barbas negras e longas e roupa dois números maiores. Sotaque portuense acentuado. Passaria fácil por um frade medieval, exceto pelos alargadores, tatuagens, anéis. Um provocador nato, se não fosse também um europeu caucasiano — gargalho (de ódio) sempre quando eles reclamam da vida e esquecem de informar que nos últimos 600 anos foram os antepassados deles que iniciaram toda a movimentação para cagar o mundo de Lima a Macau, de Ruanda a Belém do Pará, de Bangladesh a Icoaraci. E pensar que se não fossem esses filhos de uma puta estaríamos de boa a degustar nosso peixe assado de brava à beira do rio e a lutar com feras na floresta no nosso rito de passagem para nos transformar em homens adultos.
Por que vais me atirar, man?, Perguntou-me o carinha do Rap, todo cadenciado com uma ginga que não era dele.
É minha contribuição à arte nesta noite agradável, meu caro, devolvi.
No que ele soltou, virulento (perdão!), a balançar a cabeça e movimentar as mãos na altura do rosto, meio curvado pra frente:
É só mais uma forma burra,
torpe, foda e violenta.
Nessa vida já difícil, pobre,
podre, fraca, lenta.
O revólver é metáfora.
Meta fora, fora a hora,
vida afora, que te escapa
E a bala é um poema rude e ruge
o rugido de um panaca.
O poeta é eterno
não disse nada do modelo do meu terno
não disse nada do modelo do meu terno, meu bem,
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem.
O poeta nunca morre,
Sobrevive a tiro, faca, susto, vício,
Caos, doença, descompasso, suplício.
É maldito, desgraçado,
do avesso, boquirroto.
fino faro, magro e torto,
faro fino, tolo e roto…
Já respondo sem vacilo,
oco farto, fardo e mouco …
Poeta bom, irmão,
é mesmo poeta morto.
E se matou com um calibre 22, que estava escondido embaixo do blusão. Buraco na têmpora, assim, anacrônico.
Aplaudi.
Aplaudimos.
Bravo, bravo. Clap, clap, clap.
Grande performance, a plateia murmurou. Até os velhotes com cara de cu para a poesia que vem das ruas não disfarçaram a admiração. Entortaram os lábios pra baixo e sacudiram a cabeça positivos.
Após o derradeiro gemido do artista, pedi licença, pulei por cima do cadáver e me retirei.
Deixei o local, antes dos canas e do rebecão chegarem. Não gosto de perguntas, menos ainda de policiais.
Na rua, um frio do caralho, encontrei o andarilho a declamar para um poste de luz e rir do que dizia, sozinho. Segui para casa já com tosse seca, cof, cof, cof. Foi o cigarro ou a estatística da pandemia? Mistério.
Abri uma garrafa de vinho, da promoção do Pingo Doce. Sentei para escrever essa prosa, que deveria ter nascido como um poema lírico e violento parido às portas do fim do mundo.
Não deu.
Ainda assim, estas palavras serão aclamadas em cem anos depois que os cientes descobrirem vacinas para a doença e a ignorância. Um declamador, belo lusitano de voz de cachoeira, vai abrir o livro em mais uma tertúlia quase secreta, na cave de um barzinho modesto e cheio de elã. Ao final da leitura, virão palmas efusivas de um punhado desimportante de gente muito limpa e muito culta, numa noite de segunda entre a fumaça turquesa de aromáticos charutos, muita pose e expressões inteligentes. Tudo isto quando não sobrar nem o pó deste poeta, que de bom não tem nada, morto pela falta de ar e reconhecimento do público.
A decisão que adiei por seis meses foi tomada em um estalo. Não por mim, mas pelas circunstâncias. Passei noites e noites a pensar se voltava ou não do meu auto exílio profissional e pessoal na cidade do Porto, no gelado Norte português. Depois de mais de um ano no lugar, numa resistência teimosa em abraçá-lo, finalmente, tinha decidido que ficaria. Mas, quando se está longe e sozinho, ficar ou não ficar é o de menos. O que conta é largar as amarras do coração e amar o entorno. E, sim, apesar de toda reticência, de toda resistência, já amava aquela cidade luminosa e de vento insistente às margens de um rio dourado. Saí corrido sem sequer me despedir dela.
As coisas mudaram da noite pro dia.
Começou com a despedida de uma amiga. Ela sentiu o baque e decidiu cair fora nas primeiras notícias sobre o vírus. Imigrante, vulnerável pela crise, não quis pagar pra ver. Dois dias antes da partida, derrubamos umas garrafas de vinho e ela terminou a noite em lágrimas, mão na minha mão. A crise nem tinha mostrado as garras de todo ainda, mas, sensível, ela percebeu que o bicho ia pegar e se foi na segunda-feira de volta para Curitiba, grilada com a possibilidade de contágio.
Minha sensação de que era hora só aumentou, mas mantive meu prazo até o fim de abril, já com a primavera alta. Minha reserva financeira já dava sinais de exaustão e meu limite pessoal, meu cálculo seguro de pobre sempre precavido, havia passado do fim havia muito tempo. Foi um ano fértil para o ócio e para a felicidade. Muito vinho de boa safra, porres homéricos, comida boa, novas amizades, viagens, paisagens de arrombar a retina, reflexões sobre a vida, preguiça e prazer. Tudo tem um custo e a fatura sempre chega.
Foda-se, eu merecia.
Olho pra trás e me sinto imensamente privilegiado por ter vivido o que os ricos chamam de ano sabático. Eu, pobre coitado, das baixadas de Belém, para eles, os ricos, nascido para subalterno, feito para trabalhar como um cão, num shabbatprolongado. Vê se pode! Chamo de vagabundagem. Pura e simples. Sem culpa nenhuma, tampouco vergonha, depois de me foder por anos na rotina em redações e assessorias de imprensa, de sol a sol, de matéria a matéria, de release a release. Mas, estava na hora de voltar a produzir para o capital, ele não perdoa os que não são herdeiros. Estava à procura do ganha-pão antes da peste nos abater.
Já havia desistido de achar um trabalho de jornalista em Portugal. Com um mercado minúsculo e linguagem quase que impeditiva para brasileiros que não dominam o português luso, essa inserção seria uma tarefa para longo prazo, não para agora. De imediato, precisava descolar a grana para pagar os boletos. Valia tudo (ou quase tudo). Quando realmente estava disposto a usar minhas delicadas (e grandes) mãos de escritor em qualquer trabalho braçal, o coronavírus me pegou.
Não em contágio. Mas, nos efeitos devastadores que agora iniciam na economia portuguesa, que vinha em recuperação desde a Troika.
O primeiro sinal de que as coisas sairiam do lugar foram os papéis higiênicos. Um dia entrei em um supermercado e a prateleira dos rolos estava vazia. Estranhei. Mais à frente, buracos nas gôndolas de não perecíveis. Só havia pacotes de macarrões mais caros. Alerta. Nos outros dias, as ruas ficaram vazias. O uso de máscaras aumentou entre os poucos transeuntes. As estações de metro (não de metrô) também esvaziaram. Tosses ou espirros na via pública eram mais obscenos que botar o pau pra fora (exagero, mas era motivo de olhares reprovadores).
À noite, o Porto, que já é soturno de longe, virou uma cidade fantasma, fria e coberta de névoa e pavor dentro das casas com gente atenta às notícias que vinham da China, mas principalmente da Espanha e da combalida Itália, onde o número de mortos e casos cresce em nível assustador. Os alegres bares, cafés, tasquinhas e restaurantes fecharam as portas. Os turistas e os locais se escafederam. Deserto, silêncio. Os insistentes começaram a ser tocados pela polícia para irem para casa. Já se ouvia sobre demissões, falências técnicas de empresas e choro e ranger de dentes de brasileiros nas dezenas de grupos de oferta e procura de trabalho no Facebook.
Sozinho e a contar apenas comigo, a sete mil quilômetros de um porto seguro, na noite de domingo reavaliei meu plano de ficar mais tempo por achar, inicialmente, que era uma crise menor. Ao ver o tamanho do bicho, decidi ir embora, de imediato. Era hora de começar a saga para voltar a Belém do Pará e largar a vida boa e solitária que o Porto me deu em um ano e dois meses. Na segunda de madrugada comprei as passagens e parti à noite num autocarro para Lisboa entre desconfianças e uma gangue de portugueses esquisitos. A sensação de fim de mundo só aumentou a partir dali.
Saga
Uma dica: não acumulem. Nunca. Sério. Tive um trabalho imenso para me desfazer das tralhas que juntei ao longo da estadia em Portugal. Dinheiro jogado fora, mais lixo no mundo, transtorno. Um dia inteiro pra decidir o que levar em uma mala grande e uma malinha de mão. Faz, refaz e pesa bagagem. Refaz de novo e de novo. Sem contar as perdas desnecessárias, como livros, por exemplo.
Minha dor maior ficou para meu melhor amigo na Terrinha, meu violão português. De som limpo, textura lisa e macia, madeira forte, encaixe perfeito na minha mão de tocador amador. Nunca cantei tanto, nunca toquei tanto, como o fiz em Portugal. No último dia, em conversa com uma amiga alemã carioca, de lindos olhos azuis, garota de Niterói que ficou na cidade, percebi que aquele canto era também solidão, como o canto dos pássaros engaiolados. Larguei pra trás meu instrumento na casa de outra amiga, essa paraense já radicada no Porto há uns anos. Bastos cabelos de Janis Joplin, cantora também, doida e valente. Tomamos um cafezinho, falamos da vida e a guitarra ficou em excelentes mãos.
Olhei o meu quarto quase vazio na saída. Não tinha mais jeito de casa, já não era mais meu. Era só a habitação que o senhorio me ofereceu, em novembro, depois de eu ter saído do meu terceiro endereço no Porto. Cheguei ali depois de uma insignificante crise pessoal e agora partia em meio aos anúncios do tão aguardado apocalipse de ponta a ponta no mundo. Não tive como não rir da comparação entre os dois momentos e lembrei das mesquinharias, cada vez mais miúdas, de gente que encontrei antes de ir para meu melhor sossego, na Rua da Constituição. Agora era tudo passado, ficou na poeira que não limpei do meu aposento gelado, de boa cama e noites em claro.
Minha colega que dividia o apartamento comigo me levou até o portão para nos despedirmos. Foram quase seis meses de convívio com aquela polaca linda do interior do Paraná, de enormes olhos verdes e uma risada de menina. Cara de brava, sotaque de R bonito e calejada em dividir moradas com gente de todo tipo. Nosso convívio era doce (até onde enxergava, talvez ela não pense assim), entre vinhos de dois euros, piadas com os sulistas, indignações com o Brasil de Bolsonaro e reclamações dos perrengues da vida de imigrante.
Nunca soube demonstrar muito bem meu afeto por ela (talvez por ninguém), mas, assim que a encontrei e sentamos à mesa da sala, tive empatia imediata e destinei amor àquela amizade recente e em consolidação ao meu jeito. E o meu jeito era agradá-la com o que ela adorava: comida. Acho que ela entendeu minha falta de tato e trocávamos pratos e porções na sala de estar e na cozinha nos intervalos de longo silêncio e isolamento, cada um no seu quarto, daquele apartamento enorme.
Na escada, prestes a sair, olhei-a antes de partir. Vestia o roupão de sempre, os olhos e os cabelos castanhos pareciam mais claros ainda. Estava séria e grave. Meu peito se apertou e tive vontade de chorar ao deixá-la ali, agora sozinha — como se minha presença ou minha ausência fizesse alguma diferença. Porém, engoli o nó na garganta. Mais uma vez, não disse quase nada sobre como gostava dela, como a via como uma parceira, uma irmã, uma amiga, como foi importante aquelas noites calados na sala, ela em um sofá e eu noutro, com a TV ligada em Friends. Na minha despedida truncada, só balbuciei que sentiria falta dela e que ela se cuidasse e, se as coisas apertassem, viesse embora pra o Brasil, que não fosse tão teimosa. Nos abraçamos e saí.
Entrei no Uber despedaçado por, finalmente, ter tomado a decisão que não queria desde que cheguei na cidade: voltar.
40 horas
Cena de Mad Max: Fury road (2015) — Reprodução
Tenho uma sorte e um azar: posso comprar passagens muito mais baratas para viajar, por minha irmã trabalhar em uma companhia aérea e, como parente, ter direito aos bilhetes a baixo custo. Sorte porque é muito barato. Azar porque, na condição de staff, só embarco se sobrarem vagas na aeronave, assentos que não foram ocupados por quem pagou o valor cheio. Em condições normais, é um pouco estressante, mas ok. Já em uma fuga do fim do mundo, ganha proporções dramáticas. Foi pela vantagem de preço que demorei quase 40 horas para chegar em casa entre o Porto e Belém. Com direito a uma morte dentro de um dos três voos que peguei e quase exaustão por privação de sono.
Minha jornada iniciou quando saí de casa, por volta das 22 horas do dia 16 de março de 2020, rumo ao Campo 24 de Agosto, na cidade do Porto. Saí por onde entrei, de autocarro até o Aeroporto em Lisboa. No caminho da estação, a cidade vazia e o motorista de Uber lusitano cheio de comentários xenófobos contra chineses e desinformação sobre a doença já indicavam o clima ruim.
Na rodoviária da Rede Nacional de Expressos, passageiros mascarados e silenciosos. Um grupo chamou atenção: quatro homens estranhos, portugueses, com um sotaque alheio ao do Porto, com um comportamento incomum, para dizer o mínimo. Falavam alto como se estivessem bêbados, empurravam-se e usavam lenços verdes no rosto com estampa de folhas de maconha. Um deles parecia ter algum tipo de transtorno mental, um careca baixinho entroncado, estilo Pitbull. Pareciam ter saído das turbas de mal feitores dos desertos de Mad Max. Esses caras vão fazer alguma merda na viagem, previ.
E fizeram.
Não como imaginei. Mas, fizeram.
O careca doido passou praticamente todo o percurso a cantar alto fados e hinos religiosos sobre o fim do mundo.
O desgraçado só parava quando dormia, hora em que roncava feito um porco, mais alto do que a cantoria. Só aumentou ainda mais o estresse e a apreensão no interior do veículo. Reclamei alto, mas depois calei. Não era hora de contato com estranhos, muito menos de trocar socos com uma gangue de desajustados.
Lisboa, quase quatro da manhã, finalmente.
Pela primeira vez, vi um aeroporto fechado.
Uma fila de passageiros com máscaras. Gente do mundo todo. Europeus, africanos, asiáticos, americanos do Sul e do Norte. No rosto, a preocupação e o medo um do outro. Liberaram a entrada logo depois que cheguei e a polícia aeroportuária orientava com alguma rispidez, que já não sei se era a típica da Europa ou por causa da situação: um por um, um por um, um por um! Entrei o mais rápido que pude. Consegui ficar na fila menor, a do outro lado de quem chegava pela área do estacionamento.
Do lado de dentro, o sistema de som orientava a cada dez minutos, mais ou menos: mantenham a distância de contenção social e reforcem os hábitos de higiene. A voz metálica de mulher repetia em português e inglês.
Minha apreensão era agora se eu embarcaria. Havia a informação de que o voo estava lotado, com overbooking de 30 pessoas a mais e cinco stand by (como chamam os beneficiários do direito de pagar mais barato na gíria aeroportuária). Significa exatamente o que a expressão indica: os que esperam até a última confirmação para saber se entram no avião ou não. Eu era o último deles, dentro dos critérios de espera.
Minha preocupação era não embarcar e ficar como Tom Hanks, em O Terminal, à espera do próximo voo, que só seria no dia seguinte, quando o estado de emergência seria decretado em Portugal e circular no país começaria a ficar cada vez mais difícil. Fora o pedido de fechamento do aeroporto de Brasília e o clamor para fechar as fronteiras. Estava realmente com medo de ficar impedido de sair e enfrentar tempos difíceis, sem grana e sozinho.
Ateu de meia tigela que sou lembrei dos pedidos que fiz quando amarrei uma fita de Nossa Senhora de Nazaré no pulso, no ano antes de ir embora de Belém. Segurei a fita gasta e desbotada e mentalizei a santa. Me senti ridículo e derrotado. Mas, pensei na imagem. Pensei também em Xangô, que um dia me disseram ser meu orixá, e na minha boa sorte da vida toda.
Cheguei no guichê e o atendente foi peremptório: voo lotado. Você só saberá se vai embarcar na porta da sala de embarque. Me deu o bilhete sem confirmação e eu parti para mais uma etapa de espera. Mais fila, mais incerteza, mais agonia, mais cansaço. Valei-me, Nazinha.
Lá dentro, os ricos que pagam assentos na primeira classe entravam nervosos já nas primeiras chamadas, todos de máscara e malas da Louis Vuitton originais. A conversa era sobre o vírus e toda o procedimento de chegada. Me senti Leonardo di Caprio, clandestino num navio prestes a afundar. Quando chegou quase no fim do embarque, fui até o supervisor da companhia e disse que voaria no seat jump se fosse preciso. Ele riu e me entregou a passagem com o número da poltrona.
Posso embarcar, então?
Só se quiser ir.
Agradeci e entrei, quase oito da manhã. Não tinha pregado os olhos.
Nunca tinha prestado atenção como as pessoas tossem e espirram em voos. A doença faz o olhar mudar para detalhes que não faziam a menor diferença antes. Eu era um dos poucos passageiros sem máscara. Na correria, não achei o equipamento nem luvas na cidade do Porto. Consegui apenas lenços umedecidos e um pouco de álcool para limpar as mãos. Protegia meu rosto com um cachecol, só pra efeito psicológico. Sabia que não faria a menor diferença. Ao meu lado, a imagem do século 21: um casal de rapazes de mãos dadas rumo ao Brasil. Ambos de luvas e máscara, ambos com medo do futuro, como eu.
Assisti a três filmes e levantei poucas vezes para ir ao banheiro nas 12 horas de viagem até São Paulo. Sempre que olhava as cerca de 300 pessoas nos assentos vinha a sensação de que se alguém ali estivesse doente não teria muito o que fazer. Todo mundo ia pegar aquela porra.
Chegamos na capital paulista às três e meia da tarde, tempo bom, céu nublado, vinte e oito graus. Eu com minha tosse de uma gripe mal curada de duas semanas a espalhar desconfiança entre os meus. A paranoia é real. Inclusive a minha.
Acreditei que a parte mais difícil tinha acabado, finalmente. Pelo menos, já havia chegado no Brasil. Mas, o próximo voo seria mais tenso e bizarro do que estava previsto.
Paguei R$ 105 pra tomar banho e esticar as canelas numa sala VIP em Guarulhos. Estava me sentindo imundo e acabado e decidi comprar o serviço, apesar de contrariado com o preço. No entanto, foi o asseio mais caro e providencial da vida, lá adiante, perceberia. Meu voo para Belém só aconteceria às nove e quinze da noite com previsão de chegada quase uma da manhã na minha cidade. Mais uma etapa com stand by, a última!, mas foi fácil. No balcão, a atendente simpática despachou minhas malas e até me ofereceu escolha de assentos, coisa rara para quem viaja nessa condição.
No entanto, quando a esmola é demais, mesmo que não seja santo, desconfie.
Embarcamos e, na altura de Brasília, duas horas antes da chegada, pelo alto-falante, o piloto pediu auxílio de um médico voluntário.
Médico voluntário?
Alguém doente e passando mal. Se está mal e estamos numa pandemia, só pode ser o vírus!
Esse raciocínio deve ter passado na cabeça de 11 a cada dez passageiros daquele avião.
A doente era uma mulher.
Foi aquela correria dentro do avião. Comissárias em polvorosa, crianças chorosas, adultos estressados, olhos arregalados e pescoços esticados.
Acompanhei de longe a situação, mais ou menos na altura do assento de número dez, a uma boa distância de mim, que estava na poltrona 30, ao lado da janela.
Usaram respiração artificial, massagem cardíaca e nada. Todos os primeiros-socorros foram aplicados.
A mulher foi carregada. Vi quando dois homens a levaram no colo para área de entrada da porta dianteira. Usava jeans, tênis da Adidas e blusa cinza.
Muita gente correu para trás da aeronave com medo de contágio. Um casal de jovens tatuados com um bebê de colo me chamou atenção. Estavam apreensivos pelo filho.
Da cabine, outro aviso, perto da meia noite: vamos descer em Palmas, em Tocantins, para atendimento médico da passageira.
Fodeu!
Mais horas e horas de espera depois de tanto tempo sem dormir, quase esgotado. Não havia muito o que fazer. Era uma situação operacional totalmente atípica. Pro meu azar.
Depois veio a confirmação: a mulher morreu.
Mor-reu!
Fiquei em choque e sem acreditar na informação.
Desce todo mundo para sala de embarque da capital tocantinense. Aguardem orientações, disseram.
Abordei o atendente azarado da companhia aérea que estava no salão, em solo. O coitado achou que teria um plantão sossegado e estava assustado. Desviei com ginga de repórter e fiquei de frente para ele:
A mulher morreu de quê?
Senhor, não podemos informar.
O que? Numa pandemia, uma pessoa morre no avião e não podemos saber? Quero saber, sim.
Ela não morreu de coronavírus! Foi do coração!, ele revelou, muito nervoso.
Ah, bom. Obrigado!, devolvi.
O grupo se acomodou como pôde nas cadeiras duras da saleta e pensei em Lost, preso em uma fenda temporal com desconhecidos. Qual personagem eu assumiria? Era delírio de cansaço.
A espera foi dura e o avião só levantou voo quase cinco da manhã e cheguei em Belém depois das seis. O cadáver ficou pra trás e eu estava quase morto.
Soube no dia seguinte que a mulher, na verdade, havia morrido de overdose. Carregava no estômago 33 cápsulas de substâncias entorpecentes, cujo teor não foi divulgado. Morreu aos 28 anos, agonizante, como “mula”. Pelo menos, é o que dizem as notícias do dia sobre o incidente.
Isolamento
Quase 40 horas depois, desci na minha velha rua, no bairro da Pedreira, longe, muito longe do padrão do Porto, onde vivi nos últimos tempos. Antes de entrar em casa, pedi ao mortorista do Uber para desinfetar o local onde sentei, ficar longe das minhas malas e de mim. O homem ficou assustado.
Na garagem, um esquema montado para higienizar o viajante.
Tirei toda a roupa e pus na máquina de lavar já preparada com sabão. Limpei as malas e os sapatos com álcool e tomei banho de mangueira só de cueca para só depois entrar direto para meu quarto sem tocar em nada. Com exceção da gatinha Vitória, que olhava assustada o desconhecido que acabara de invadir o espaço dela, não vi ninguém. Nem mãe, nem avó, nem irmãos. Souberam que cheguei pelo WhatsApp. Me tranquei num isolamento com prazo para terminar em 15 dias por medo de contaminar as pessoas que amo. Isolado, agora escrevo.
Terminou, assim, minha corona-fuga e minha passagem por Portugal para começar a quarentena brasileira em meio aos primeiros rumores sobre a pandemia nessas bandas de cá. Por coincidência, no dia da minha chegada, foi registrado o primeiro caso de Codvid-19 na minha cidade. Não, não sou eu.
Enquanto escrevo, minha tosse diminuiu, não tive febre nem dificuldade para respirar. Mantenho a atenção nas notícias, distância de todos da minha família e minha fita de Nossa Senhora de Nazaré grudada com minha falsa descrença. Tenho surtos de esperança e desespero nessa crise que se inicia e algum medo do futuro. Guardo ainda muita vontade de rever os meus, os novos e os antigos meus, agora aqui do isolamento voluntário, além da saudade enorme dos amores, dos hábitos, das manias, dos parceiros e até da solidão que deixei pelo Porto além-mar.
Quem sabe um dia eu volte, quem sabe não volte nunca mais. Quem sabe fique por aqui ou aponte outro destino. Acho que peguei o vírus do expatriado, que não é mais de lugar nenhum.
Só sei que a vida é desse jeito, essa incerteza sem fim. Com ou sem apocalipse, na multidão ou isolado.
De resto, é isto.
Cuide-se. Lave as mãos e fique em casa. Essa porra vai passar.
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