
Faz mais de vinte anos que morri e fui substituído por outra pessoa. Lá se vão 22 anos, mais ou menos.
Eu estava perdido, entregue, jogado às baratas, sem saber o caminho nem a verdade, mas, ele me salvou. Aleluia!
Não, não foi Jesus.
Fiz um caminho inverso: abandonei um catolicismo que me aprisionava numa consciência de bons serviços coletivos, mas de servidão e anulação individual, nos dissolvendo como indivíduos, como prega a igreja.
E saí do templo chutando portas. Ou melhor, derrubando paredes, literalmente — um dia conto essa história aqui.
Fui servir a outro senhor, o teatro.
Não me serviu para ganhar prêmios nem dinheiro, nem para ficar famoso — até recebi uma crítica péssima da doutora Amarílis Tupiassu, no jornal, minha maior glória pela minha incursão nas artes dramáticas. Obrigado, professora! E outra resenha maldita do meu hoje amigo Ailson Braga, arrasador nos comentários, perfeito na avaliação como profissional tarimbado da área. Valeu também, meu irmãozinho!
Se não alcancei o apogeu como ator, por outro lado, virei gente.
Lembro de ter entrado no galpão da Humaitá, no meu bairro de berço, a Pedreira, e encontrar o velho, que seria nosso guru.
Vinha manco de uma perna, bigodes e olheiras, já com poucos cabelos e todos brancos. Umas calças frouxas e o sorriso mais frouxo ainda. Era Amir Haddad, o lendário diretor de teatro de rua, fundador do Tá na rua, uma figura mítica da cultura brasileira.
Eu era um garoto de 19 anos. Burro, magro, pobre, sem jeito, tímido e sem graça. Sobravam problemas de autoestima e de dinheiro e faltava ideias do que fazer da própria vida.
A proposta do Amir para o teatro era coisa de doido: a gente chegava no espaço pros ensaios e apenas dançava.
As pessoas entravam para ver porque era ensaio aberto. E estávamos lá, dançando. Eu nem sabia dançar e descobri que ninguém sabe e nem precisa saber. Apenas dançava, seguia a música, qualquer ritmo, qualquer gênero.
Passamos meses a dançar. Todo mundo. As músicas iam de sucessos populares à música clássica, de samba ao carimbó. E, no meio das danças, faziíamos performances, pequenas esquetes, cenários móveis, figurinos improvisados, montávamos pequenas peças, tudo de brincadeira.
Nem sabíamos que tudo aquilo seria incorporado, de alguma forma, no espetáculo Galvez, o imperador do Acre, a peça, baseada no romance do amazonense Márcio Souza, que seria mostrada como resultado daquele projeto de inclusão e cerne para uma universidade popular de teatro.
O teatro comeu minha timidez, comeu minha vergonha na cara, comeu minhas inseguranças, comeu meu medo, comeu o resto da minha crendice, comeu minhas roupas, comeu minhas manhãs na cama, comeu minhas noites na rua, comeu minha preguiça de viver, comeu meu resto de infância com os pés cheios de frieira, me comeu por inteiro e me cuspiu outro. E eu o devorei igual pra vomitar outra vida e ganhar outra forma.
Ganhei malemolência no carnaval que era ensaiar na direção do Amir. Ele mesmo explicou que seu método era baseado nos ensaios de escola de samba. Uma vez o convidaram e ele foi. Observou por um tempo o ensaio começar. Mas, as pessoas só sambavam na quadra. Quando começa o ensaio? Já começou. O ensaio é isso.
O velho dizia coisas nas reuniões no barracão como “cultura e cidadania não estão separadas, são uma coisa só”. “É preciso todo mundo jogar bem pra que apareçam os craques pra fazer o gol”. Dizia para uma plateia que tinha crianças de 10 anos de idade a adultos de 70 anos. Eu estava lá de olho arregalado e olhos mais arregalados ainda.
Um dia Amir contou a história de como percebeu que tinha virado um palhaço, um mero palhaço e como eram importantes os palhaços no mundo, na arte, na porra toda. Não, ele não estava falando do Bozo. Ele estava falando da alma do circo e da alegria como energia emancipadora da humanidade.
Amir relembrou que desobedeceu todo mundo pra ser ator. Era pra fazer concurso do Banco do Brasil e ter estabilidade, ser um bom funcionário, com horário, salário, cartão de ponto, chefe. Mas acabou por ser apenas um palhaço. Um palhaço de rua. Um artista de rua.
Ali, o velho dominou a cena numa conversa e foi uma catarse geral nesse dia. Nesta altura, ele tinha quase 70 anos e falou da própria vida e de como era feliz com aquilo, de como aquele risco de ter largado tudo pela arte o transformou e fez sentido, deu uma vida absolutamente rica em experiências humanas, cheia de amor e luz.
Desabamos ali de tanto chorar com o relato tão forte daquele velho, que tinha virado um irmão, um pai, um avó, um tio, um amigo, alguém que amávamos profundamente, como se ele sempre tivesse feito parte das nossas vidas, daquela e das anteriores.
Me habituei àquela rotina.
Em poucos meses, eu era um vagabundo mambembe com uma trupe de amigos. Daniel e Iuri eram os mais chegados. Andávamos com roupas dos ensaios, meio artistas, meio mendigos, meio palhaços. Comíamos pela rua ou na casa de alguém que nos recebesse. Iuri era o melhor de vida de todos nós, o mais velho, e nos oferecia lautos almoços feitos pela dona Fátima, comida deliciosa. Era ele quem nos dava caronas providenciais em seu Gol quadrado, onde cabiam umas dez pessoas na mala-carroceria improvisada — quase um carro circense.
A esta altura, o dia já era noite e vice-versa. Minha mãe e meu pai queriam me matar: eu acordava meio dia, almoçava e sumia pra aparecer só de madrugada. Esse moleque tá envolvido com droga, com alguma coisa errada. Tínhamos porradas homéricas e dezenas de bate-boca sobre o futuro e trabalho e os riscos da vida.
Minha confiança e autoestima melhoraram tanto que de um quase poeta franzino e arredio, que morria de medo e idealizava as mulheres com musas inatingíveis, virei quase um fauno. Desenvolvi um poder de sedução que, pra mim, era impossível até então. De repente, elas me notaram e, simplesmente, começaram a aparecer de todos os lados. Católico e virgem, aproveitei o que pude. Fazia parte do pacote de se desenvolver como ser humano, como homem, sair da mera curiosidade e me jogar de cabeça no flerte, na conquista, nos beijos, nos amasso, no sexo — cuja primeira vez veio relativamente tarde, mas é parte também dessa fase gloriosa de tantas descobertas.
Aliás, a força da sexualidade era um dos motes do teatro de Amir também. Trabalhar essa energia e esses arquétipos, entendê-los e liberá-los nas suas mais diferentes manifestações. Cada um com seu entendimento. Confrontar a diversidade sexual daquele grupo tão heterogêneo sem nenhum medo ou preconceito. No limite, do que hoje, talvez, fosse considerado uma enorme imoralidade e motivo de escândalo.
Em meio a essa farra toda do corpo e dos sentidos, estudávamos também. Líamos bastante, principalmente, teatro — foi uma época que devorei tudo de Nelson Rodrigues que caiu nas minhas mãos. Escrevíamos alguma coisa — nesse tempo ouvi, pela primeira vez, que me expressava bem com palavras, muito além dos bilhetinhos infantis que mandava pras meninas, minhas paixões pueris.
Montávamos peças e performances e apresentávamos nos ensaios. Criamos um grupo alternativo para fazer detestáveis “telegramas vivos” e era um barato invadir bares, casas e restaurantes pra “homenagear” aniversariantes. Também ganhamos dinheiro com o Zecão, meu querido Zecão do Experiência, que nos convidava para participar de peças encomendadas por empresas e escolas.
Vivemos uma ilusão de uma comunidade coesa, de umas 60 pessoas, no final do processo todo, embora nosso núcleo mais próximo agregasse, no máximo, umas sete. Éramos novos hippies em Belém libertos e desenvolvidos pelo teatro numa cultura dionisíaca, perfeitamente, preparados para enfrentar a vida e os desafios de ser artistas.
Amir havia conseguido no meio daquela doidice toda. Tinha nos doutrinado e incutido uma consciência política da nossa força como cidadãos. A gente estava com tudo e não estava prosa. Sabíamos agora, por fim, que a arte, uma vida boa e o direito à felicidade eram direitos de todos. Não queríamos menos nunca mais.
Quando o espetáculo Galvez estreou, em novembro, foi um fiasco.
Foram onze dias difíceis e só afinamos a apresentação lá pelo quarto dia da temporada única. Os críticos do projeto, que era financiado pelo governo estadual, caíram de pau. Chamavam de lixo, de porcaria, de tudo que não presta. Mas, levamos até o fim. Amir ficou arrasado, eu lembro. Até adoecer, ele adoeceu.
O último dia da apresentação choramos muito, todos nós: moças e rapazes, anciões e infantes. E nos abraçamos na despedida. Foi uma jornada absurda e violenta pra cada um.
Lembro-me bem do menino Pirarucu. Era magrinho e da cor dos índios, como eu. Brincávamos que ele era uma versão menor minha. Um pequeno Anderson, um filho. E nos apegamos tanto a essa brincadeira que, quando a peça terminou, ele correu aos prantos pra me abraçar. E choramos ali aquele fim e começo de outras histórias.
Terminava ali uma família de doidos e partia o Amir pro Rio de Janeiro, para nunca mais. Ficamos órfãos e sem saber o que fazer, mas a vida se encarregou do resto.
No ano seguinte, parei tudo pra estudar e me tornar jornalista. Agora já com um esboço bem acabado do que eu viria ser, pensar e fazer. Seguro de mim, não deixei que pensamentos negativos nem pessimismos de outros me impedissem de fazer o que fosse preciso pra melhorar de vida. Ninguém acreditava muito que eu passaria naquele vestibular concorrido numa universidade federal.
Um pobre na faculdade? Mas, quando já. Não havia bolsas nem programas de acesso. Faltavam ainda dois anos para Lula se eleger presidente e implantar os projetos de educação que permitiram que a gente pobre entrasse nas universidades. Não para limpar salas ou banheiros, mas para estudar.
Em janeiro de 2000, passei em 11° lugar em Comunicação Social e na Universidade Federal do Pará aos 21 anos, já atrasado, como em tudo.
Era o primeiro do meu nome, o pioneiro da minha família a chegar lá, um ex-vagabundo, contaminado agora pra sempre com o vírus que assombra a alma dos artistas. Minha mãe chorou. Era um novo futuro que surgia pro filho errante.
E foi assim que 1998 mudou tudo até hoje.
(Vá ouvir Piruestas, de Chico Buarque)
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