De asas nas costas e sonho nas mãos, a vida de Emily

Destaque
Anjo de Port Ligatt, de Salvador Dali (1952)

Quase ninguém notou a entrada de Emily e, talvez, viva alma tenha gravado o nome dela, exceto eu. Estava de máscara e tinha os cabelos vermelhos e compleição de corredora com os ossos do ombro pontudos prestes a rasgar a pele marrom. Já passava das sete da noite e ela aparentava cansaço. À primeira vista, não reparei muito bem, confesso. Para os meus padrões de observador compulsivo, não olhei quase nada. Estava de vestido escuro, curto, sandálias e tinha asas bordadas à tinta nas costas. Era só mais uma entre tantos. 

A concorrência dentro dos coletivos é cruel e não falo sobre conseguir um assento para seguir viagem bem acomodado e seguro dos trancos e do humor dos motoristas, quase sempre entre o azedo e o amargo e o desejo de matar ou de morrer, kamikazes na quentura belenense.  Na verdade, me refiro ao intenso comércio no interior dos ônibus da capital, sinal da péssima saúde econômica do Brasil de 2022, quando o emprego formal é luxo para pouquíssimos e as contas estão aí pela hora da morte. Para esse vírus sem cura, o remédio encontrado pela multidão de anônimos à margem é arrumar qualquer mercadoria e rumar para onde for possível vendê-las, porque os boletos não esperam e a fome, menos ainda.

Nessa luta renhida para ganhar o pão, não basta oferecer o produto. É preciso inovar nas técnicas de persuasão do cliente/passageiro. Vale quase tudo pelo trocado. A primeira missão é entrar no veículo: levantar o polegar, aguardar e olhar de aprovação do condutor para liberar a porta traseira como cortesia. Em seguida, entrar e vencer o medo de falar, vencer o parco vocabulário, vencer o tédio alheio, vencer a vergonha própria, vencer o desequilíbrio causado pelo movimento e pela irregularidade das esburacadas ruas da cidade e, acima de tudo, vencer a invisibilidade imposta pelo outro.

Ambulantes nos ônibus não são como vendedores de loja, nem como os desejáveis feirantes em dia de feira, sempre a postos no exato lugar em que está a clientela disposta a comprar, seja na bonança, seja na penúria. Nos coletivos, os vendedores são um corpo estranho que desperta muitos incômodos e um punhado de sentimentos, em sua maioria, negativos, cuja variação vai desde a tola comiseração à egoísta raiva por ser um agente aleatório da perturbação de um ambiente já pouco tranquilo. São eles pedra no sapato, cisco no olho, espinha na garganta, cálculo no rim, penetras em festa triste com gente exausta. Resta-lhe vencer, portanto.

De tão pobres, sobra aos vendedores dentro dos veículos parco recurso para a ciência do convencimento. Não há muita alternativa senão o marketing de guerrilha para compensar a falta de artifícios e, assim, seduzir o comprador. Há quem use de cantoria, carisma, grito, lábia e até a vida pregressa cheia de erros. Não se pode esquecer ainda os que metem Deus e Jesus no meio, tampouco os que apelam para a emoção, com provas documentais de suas misérias. Trazem chagas, laudos e receitas médicas para salvar a eles ou a um filho ou outro parente muito próximo.

Quase ninguém fala da conjuntura – pelo menos nunca vi nem ouvi. Ninguém começa com um: vivo no Brasil desde que nasci, o mesmo Brasil que existe há 522 anos, e o cenário é esse: guerra, pandemia, crise do capitalismo, necroliberalismo galopante, apocalipse climático, intolerância política, um presidente que anda de jet-ski (de novo!), enfim, a idade média, com sinal de wi-fi e, ainda assim, não para todos. Estou aqui e vocês já deveriam saber o porquê. Se podem, comprem. Se não, entendo, afinal, estamos todos no mesmo barco, ops, no mesmo ônibus.

Emily também não foi por aí. O pregão dela era pessoal e intransferível e começou muito bem.

Fez uma microanálise da concorrência e atentou para os rapazes com tornozeleiras ou os que expunham sem mais nem menos a colostomia para o horror de quem assistia. Falava forte e com decisão, uma mão gesticulava, a outra segurava a barra metálica. Não distribuía os biscoitos de Abaeté e depois os recolhia, como grande parte faz quando quer vender suas bugigangas. Não, ela queria antes convencer o comprador, queria vencer, mas não pelo cansaço. Estava atenta, focada, firme no propósito.

E foi quando soltou a palavra sonho, que ela me fisgou.

Quem ainda sonha a essa altura do campeonato?, pensei.

Como um Martin Luther King, disse, mais ou menos, assim: todos que vêm aqui tem um objetivo e o meu é realizar um sonho.

E o sonho de Emily boiou, entre um solavanco e outro, dentro do busão. Havia ali uma estratégia emocional. Porém, os passageiros permaneceram imóveis. Uns olhavam evasivos a rua pela janela, protagonistas de um clipe do Roxette, outros não ouviram nada porque seus mundos estavam na palma da mão dentro do celular. Teve quem fechou a cara por ser antipático por natureza.

Emily carrega um sonho, mas, no momento, o real lhe obriga a vender o que tem de ônibus em ônibus, de parada em parada. Passou por mim desajeitada sem perder o imponente porte. Negra, designada homem no nascimento, de asas nas costas, bela, esperançosa, indestrutível, anjo torto. Sentou-se em uma das cadeiras do fundão. Me virei para trás, fiz um sinal e comprei a mercadoria. Dispensei o troco, no que ouvi dela, entre surpresa e agradecida, um deus te pague.

Para Freud, o sonho é a uma realização disfarçada de um desejo reprimido. Para o poeta, matéria prima e criação. Para o jogador do jogo do bicho, a chance da fortuna. Para a debutante, a festa. Para a noiva, o sim. Para o pesadelo, o contrário. Para o operário, a revolução. Para todos nós, o que aconteceu à noite passada e nem lembramos mais. Para Emily, ser maquiadora.

Era o que ela sonhava enquanto conferia as moedas.

Com Emily, não pude deixar de me lembrar de uma peça de teatro que vi há muitos anos, escrita por um poeta e dramaturgo espanhol, Calderón de la Barca, morto há 340 anos. Era sobre um filho de um rei que é renegado pelo pai e trancafiado em uma torre. Em um dos trechos, o escritor lança:

Sonha o rico sua riqueza

que trabalhos lhe oferece;

sonha o pobre que padece

sua miséria e pobreza;

sonha o que o triunfo preza,

sonha o que luta e pretende,

sonha o que agrava e ofende

e no mundo, em conclusão,

todos sonham o que são,

no entanto ninguém entende.

Eu sonho que estou aqui

de correntes carregado

e sonhei que em outro estado

mais lisonjeiro me vi.

Que é a vida? Um frenesi.

Que é a vida? Uma ilusão,

uma sombra, uma ficção;

o maior bem é tristonho,

porque toda a vida é sonho

e os sonhos, sonhos são.

Emily desceu na Almirante Barroso, ali por São Braz, altiva, de olhos de fogo e os sonhos nas mãos, a correr atrás da vida, talvez sem se tocar que vida e sonho se misturam e, enquanto uma não acaba e o outro não se realiza, há um intervalo de crueza e cansaço, de perda e fracasso, que transforma um e remodela o outro ao longo desse curto caminho entre sonhar e viver.

Vá ouvir It Must Have Been Love.

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Crônica originalmente publicada na coluna Daqui te Escrevo do Dol.

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De terrenos baldios e copas de abieiros

Praia de Inhaúma – Acervo Museu da Maré.

Me forcei a uma lembrança bonita da infância. Apertei aqui e ali, revirei pedras, visitei ruínas, fui a terrenos baldios, corri em matagais, vasculhei em vão de sofás, em prateleiras e embaixo de colchões mofados. Não achei quase nada.

O mais longe que cheguei foi ao dia em que um animal voador, provavelmente um morcego, invadiu a casa e ouvi gritos de mulheres. As asas grandes e negras, o ziguezague bêbado no ar. Eu estava deitado de barriga pra cima dentro de uma rede. Enquanto enxotavam o bicho, olhava as ripas e o avesso das telhas do casebre sem forro, alheio, expectante, indefeso.

Mais fundo ainda, encontrei a sensação incômoda de perceber um erro, talvez o primeiro que dei a devida atenção. No batente da porta, veio quente e pesado no fundo dos shorts. Não recordo muito bem, mas fui repreendido e pela primeira vez senti o que era a vergonha e fui comunicado que aquele odor era reprovável.

Continuei a busca. Me veio outro cheiro, o do igapó por baixo das pontes de madeira, onde aprendi a andar me pegando pelas paredes daquela primeira vila de casinhas de tábuas, já extinta há tantos anos. O coração gelado nos primeiros passos e a queda dentro da água podre igualmente fria. Me lembro de, pelo menos uma desses mergulhos, e o aroma de capim e de lixo ainda me atropela, como se agora estivesse prestes a me afogar no esgoto a céu aberto da aurora da minha vida.

Busquei essas lembranças. Um Natal nos dezembros de chuva, um brinquedo esperado, um passeio de carro, uma briga vencida ao menos, uma pipa no ar, um guara suco com pastel na mercearia do seu Abraão, um dia na praia, uma mulher bonita que me parou do nada na volta da escola, me beijou a face e me disse que eu era um menino lindo. 

Percebi que as tive todas, mas as mais nítidas, as que ficaram como resíduos, remodeladas ao longo dos anos, as desenterradas de todo, expostas como velhas ossadas, são as muito feias, muito sujas, muito escuras, por vezes trêmulas, demais envergonhadas, frequentemente doridas, de uma criança que tinha muito interesse e certo pavor sobre o que não conhecia e acontecia ao redor.

Persegui minhas reminiscências mais belas e encontrei um moleque de estômago inchado, unhas roídas, pés cheios de frieiras entre os dedos e olhos brilhantes e tristes, em cima de um abieiro sozinho. Descalço lá em cima, pensava acerca de algo que não me lembro, embora me force, force muito para lembrar, e não alcance. Ele olhava as telhas quebradas de amianto da retrete no quintal por onde chegou às árvores e, de vez em quando, suspendia a cabeça para ver a luz atravessada nas folhas e galhos. E sentia o que agora sinto, quase 40 anos depois.

Vá ouvir Mamma Maria.

Um corpo na tempestade

Photo by Joyce Romero on Unsplash

O almoço foi escasso, me lembro muito bem. Quando a empregada da casa de Eli pôs à mesa com aquelas cumbiquinhas com quase nada dentro, o Alan arregalou os olhos. Sem trava alguma, ele reclamou da quantidade do picadinho, da miséria do feijão, do arroz de pinto e da porção minúscula da saladazinha. Éramos pobres, tampouco tínhamos serviçais, mas em nossas casas havia a fartura, do básico, porém em profusão. Era tudo bem servido sempre, todo santo dia, nas horas antecedidas pelo cheiro que preenchia a casa desde a cozinha. Não expressei meu incômodo diante da escassez por vergonha e alguma educação, embora tenha lamentado o mau bocado que preencheu meu prato.

Cria que estávamos em uma casa de classe média, porque Eli era uma das muitas crianças que estudavam em colégios particulares e sofreram o baque do confisco da poupança dos pais, em 1990, e da crise econômica da era Collor. Dois anos depois , ele e o irmão Edclei estavam metidos em um uniforme de malha da rede municipal, às sete horas, encostados no muro em fila para entrar na escola miserável que eu já conhecia muito bem.

Nem de longe os dois tinham caras de meninos abastados. Eram tão magros, macilentos, rotos, tortos e feios quanto eu. Parece que o pai trabalhava em um bom cargo na Celpa, se não me falha a memória. Não importa. O que me chamava atenção é que havia esses indicadores de uma vida melhor do que a nossa: a experiência da educação privada e uma bonita casa de alvenaria na Cidade Nova. Diferentes de nós, Alan e eu, moradores de passagens sem pavimentação e saneamento em arrabaldes muito piores.

Abro parênteses para falar que Alan, sim, parecia um menino abastado. Era bonito o danado. Não parecia sofrer. Dava-se bem nas disciplinas todas e cultivava inteligência matemática e um espírito competitivo. Seria médico, dizia. Tinha uma pele corada, não era gordo nem magro demais. Chamava atenção das meninas pelo sorriso de dentões semi-alinhados e olhos vivos, brilhantes, escuros, de cílios alongados, como os da Margarida do Pato Donald. Acima do olhar de faísca, possuía belas sobrancelhas negras, como a de um ator de tevê turco. Nunca foi tímido.

Na verdade, ele era um menino com gestos delicados que falava alto demais e sem muita coordenação, feito uma metralhadora. Meu pai o comparou com o Zé Porrinha, um prestação cearense que falava aos berros com péssima dicção — era um exagero. Alan era chamado de Bebeto porque era bom de bola e vivia com uma camisa de número 7 do Vasco, o do atacante tetra campeão de 1994. Ficamos amigos depois de uma briga, a qual não me recordo o motivo. Depois dessa pequena rusga, sem maiores consequências, nunca mais nos largamos. Tínhamos muitas afinidades e nos amávamos como irmãos. Aprendemos a tocar violão, estudamos e fomos a carnavais juntos. Até hoje, se aparecer na casa dele, dona Mirtes, mãe do agora doutor Alan, me trata como filho, de tão amorosa que me recebe.

Alan era um raio de luz. Já Eli e eu, duas sombras raquíticas. Com fome, então, parecia pior. Desse encontro de quase 30 anos, assentou na lembrança o estômago vazio e o coração cheio de pavor no retorno para casa.

Como era um trabalho escolar, precisamos findar a tarefa no mesmo dia e terminamos muito tarde para os padrões de meninos de 13 anos. Tudo se acabou pelas seis e meia, quase escuro, e partimos já com medo de assaltos ou ataques pelas ruas que não conhecíamos. A mim, a volta incluía dois ônibus e essa despesa já era demais, mesmo com a meia-passagem. Uma merenda, um completo, uma coxinha que fosse, nem pensar.

Havia passado muito da minha hora. Chegamos de manhã e a casa de Eli ainda estava fechada e cheirava a gente adormecida. O trabalho levou o dia inteiro e não havia como avisar a minha família. Minha casa só foi ter telefone muito anos depois e o celular ainda era restrito a operações militares e filmes de ficção científica. Se alguém dissesse que um dia os smartphones seriam acessórios comuns a adolescentes naquele tempo, receberia uma gargalhada como resposta. Aquilo era arma do 007, porra.

Rir era tudo que não conseguia fazer na saída da Cidade Nova. Temia pelo horário e as consequências da demora. Levar uma esculhambação era o menor dos problemas que enfrentaria ao chegar à noite em casa. Roí o resto das minhas unhas que me sobrou dentro do coletivo, em pé, ao lado de Alan, que continuava tranquilo e infalível, como Bruce Lee, com seus lindos olhos com belos cílios e bastas sobrancelhas turcas. A calmaria do meu amigo me deixou irritado. Parecia pouco caso com a minha angústia, filho da puta.

Ao chegar na BR-316, o trânsito parou. Só podia ser a chuva. Sabe como são os motoristas. Qualquer chuvisco desaprendiam a dirigir e pisavam mais lento no acelerador. Com mau costume dos temporais, geravam pelo tédio e pela burrice os engarrafamentos. Quase uma hora depois, o mar de lanternas vermelhas dos carros se intensificou e alguém falou na parte da frente do ônibus:

_ Alguém foi atropelado!

E a frase ecoou por outras bocas:

_Alguém foi atropelado! Alguém foi atropelado!

E a informação cresceu segundos depois:

_ Uma mulher foi atropelada.

_ uma mulher?

_ Atropelada?

_ Uma mulher atropelada.

E, de atropelo em atropelo, meu coração parou por um segundo, como quem pressente, como quem toma conhecimento de que foi atingido pelo destino.

_ uma mulher morena está na pista. Morreu. — contou alguém que saiu do veículo e chegou até o local, como um repórter de rua, e voltou para contar a tragédia aos demais presos dentro do ônibus naquele congestionamento diabólico.

Fiquei em choque e minha cabeça desenhou toda a cena: minha mãe saiu de casa desesperada atrás de mim. Ela não sabia o endereço, tomou um ônibus até o Entroncamento para ir começar as buscas em todas as Cidades Novas (creio que eram oito) para achar o filho perdido. Mas as buscas foram interrompidas abruptamente. A desgraça a achou primeiro.

Um acidente. Um carro. Um caminhão. Outro ônibus. Todos em alta velocidade. Um maníaco ao volante, um psicopata assassino, um sociopata das ruas. Minha mãe morta no asfalto. Sangue, traumatismo, trauma. Meu deus, meu deus! Eu ainda acreditava em deus e o clamava.

Barulho do toró, rugido dos motores, buzinas nervosas, o ônibus que me levava mortificado avançou lentamente e as versões sobre o ocorrido se multiplicaram rápido naquele universo abafado de janelas fechadas e rostos desconhecidos. O cobrador se manteve intocável, com seu uniforme de camisa de botões azul e calça preta, e conversava com um sorriso de canto de boca com uma moça muito interessada no palavrório dele — cobradores sempre atraem muitas paixões.

Nos bancos, as pessoas contavam detalhes que nem sabiam, porque se a realidade não está revelada qualquer um pode criá-la. Inclusive eu. Não quis contar a Alan minha certeza. Era minha mãe jogava ali fora sob a chuva e o olhar dos curiosos até chegar a polícia e o rabecão para recolhê-la. Estava calado e com os olhos mais tristes ainda. A tempestade eram minhas lágrimas, como num clipe clichê de música ruim.

O ônibus passou longe do sinistro, ocorrido na outra pista, no sentido Belém-Ananindeua. O bolo de gente lá fora, tomados de curiosidade mórbida, não permitia ver o cadáver ou evitei olhar. Segurei o choro ao máximo e ignorei Alan, que espichou o pescoço fora da janela imprudentemente para tentar ver a vítima estirada no asfalto.

Ao passar do local da morte, o trânsito fluiu. Descemos em frente ao Palácio Lauro Sodré, quilômetros depois. Alan atravessou a rua rumo ao Curió-Utinga e fiquei com minha aflição e meu pesadelo no ponto de ônibus à espera do Aero Club, mais um ônibus para chegar em casa. Até que não demorou. Estava exausto, faminto e encharcado. Minhas sandálias patinavam embaixo dos meus pés. Meu material escolar também ensopou.

Quando entrei na minha rua tomada de lama por causa do aguaceiro entrei em pânico, porque das duas uma: ou a notícia funesta já havia chegado por lá ou eu teria que contar tudo o que vi para os que nem imaginavam aquela perda precoce. Minha mãe ainda tinha apenas 30 anos em 1992. Nunca imaginei que fosse tão jovem, porque minha referência de idades era de uma criança. Ainda assim não era hora de morrer. As mães não devem morrer nunca, menos ainda quando se é um garoto que saiu cedo do lar apenas para cumprir uma missão da escola.

Entrei em casa devastado e pronto para dizer a todos que ela havia sido atropelada e o culpado era eu. Eu deveria ter voltado mais cedo, eu deveria ter dado um jeito de avisar, eu poderia ter ligado pro orelhão da minha rua, que eu nem sabia o número, e pedido a um vizinho que a chamasse, eu deveria. Como pude? Eu, eu, eu, eu. Culpado para sempre. Matei minha mãe. Matei. Se ela não saísse desesperada atrás de mim, jamais teria sido colhida por um carro e morreria sob a tempestade e ficaria deitada no asfalto sem socorro feito indigente.

_ Onde tu te meteste, menino? Tu tás ficando doido? Vou te comer de porrada hoje, seu moleque! Pensei que estava morto, seu desgraçado!

Era ela. Viva e furiosa com um cinto na mão.

Nunca fiquei tão aliviado diante de uma ameaça de surra.

Minha mãe nem me bateu e deixou eu explicar a situação. Ela nunca soube que por quase três horas esteve falecida na rodovia depois de um atropelamento. Mais calma por eu estar vivo também, ofereceu-me um prato de comida quente e abarrotado de carne, arroz, feijão e tomates. É assim que se serve, Eli.

Antes, mandou-me tomar banho para não gripar, no que fui bem contrariado, já esquecido da minha fase momentânea como órfão.

Realmente, não gripei. As mães sabem das coisas. Mas inventei uma febre para ficar em casa no dia seguinte e viver meu quase luto e minha celebração por dona Clarisse continuar ali comigo.


Vá ouvir Fixação.


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Um galo sem hora pra cantar

Photo by Ralph (Ravi) Kayden on Unsplash

O galo que tanto odiei hoje me sangra de longe. Não ouço mais o canto daquela ave minúscula e aziaga. Quantas vezes quis matá-lo ao vê-lo no quintal, raquítico, entre as galinhas magras. Não tinha hora para perturbar. Cantava com força e desespero. Nunca esperou as quatro da manhã, menos ainda o sol nascer. Tinha uma vitalidade e uma insistência invejável em um corpo tão pequenino.

Era um adolescente, de penas pretas, crista mirrada, esporões inofensivos. Talvez estivesse apaixonado, talvez sob pressão para provar que era um galo e não um maldito rato, talvez não conseguisse entender a dinâmica do tempo para os de sua espécie por ser cego. Talvez não percebesse que estava em um quintal cheio de lixo e cacos de tijolo e telha, no centro da cidade e não na roça.

Da minha rabugice, olhava o animal e queria silêncio. A paz absoluta. Ele me deixava irritado. Se houvesse uma espingarda, um pedregulho que fosse. Que fizessem um cozido daquela pouca carne dura, que oferecessem em sacrifício, que dessem fim naquele mau agouro.

Mal sabia que o canto, hoje inaudível de tão distante, me faria tanta falta. Parece que todos os galos do mundo, finalmente, calaram.

No dia em que saí, ela no quarto trancada de olhos vermelhos, olhei o bicho pela janela pela última vez sem nenhuma razão aparente. Ele ciscava debaixo do sol, alheio à sua natureza de galo e a qualquer coisa. Bati a porta do 309 e desci as escadas. Foi quando ouvi o canto esganiçado, como quem diz venci, como quem dá adeus.

Lacrimoso, arrastei a mala até a rua três andares abaixo e ela não me viu sair. Nem nunca mais.


Vá ouvir Não é céu.


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Fantasma mesmo antes de morrer

Automat, Edward Hopper (1927)

O homem percebeu de imediato o abatimento dele e se aproximou com o panfleto. As vendas estavam resumidas em uma diagramação muito parecida com um folheto de mercadinho de esquina ou propaganda de bloco de carnaval. Avaliou no automático. Só sabia que não tinha dinheiro, mas arrumaria. O olho bateu no mais barato. A mãe estava na pedra da morgue municipal, ainda com a bata da internação e algodões no nariz. O corpo maltratado, não pela morte, mas pela vida, denunciava que os últimos anos não foram muito bons.

Só que nem sempre foi assim.

Uma semana antes, Marília entrou numa venda para comprar cigarro junto com a prima e amiga de infância que saiu de Belém para vê-la. A visitante parece que previa. O vendeiro estendeu a carteira de Derby e disse sem constrangimento:

_ o que se faz de uma miss.

Ela riu.

Não se sabe se concordou ou apenas se protegeu da ofensa, porque, no fundo, era uma agressão gratuita. O velho remeteu ao carnal de 1979, quando Marília de biquíni enfeitado de lantejoulas e miçangas e um penacho na cabeça enlouqueceu a cidade como Rainha da Beleza e da Alegria. Tinha olhos pequenos e negros, brilhosos como faísca, e duas fileiras de dentes perfeitos.

O corpo sinuoso e lindos úberes de puro músculo com mamilos salientes e apontados para o céu. Um quadril redondo centralizado por um vente de pelos negros e vastos, de lábios grandes, suculentos. Não tinha tanta bunda, mas tudo harmonizada maravilhosamente bem. Pelos, gestos, cabelos e a ascendências de índios Camutás a fizeram uma raridade e, consequentemente, uma miss, a mais bonita desde que os franceses puseram o pés naquele inferno.

Nessa época da coroação, conheceu Murilo, ou, Dr. Murilo, um homem que usava anéis de ouro nas duas mãos e tinha uma barba grossa e fechada e belos olhos verdes, como o Luís Carlos Miele.

A prima odiou o comentário do comerciante e, ainda assim, não conseguiu não comparar. Olhou a velha que estava ao seu lado e, finalmente, também se chocou com os estragos.

Marília agora tinha os olhos cobertos por pálpebras caídas e tristes. O lume se perdeu de tanto olhar o rio do cais no escuro da noite. A pele manchada com placas escuras feitas pelo sol, além das rugas do cansaço esculpidas pela vida. As unhas dos pés e das mãos mal cuidadas, algumas encravadas, e uma barriga grande de verminose e outras doenças. Dos tempos de deusa, manteve o comprimento do cabelo e só, agora cheio de fios brancos e amarelados, morada de piolhos.

Andava com as roupas velhas que lhe doavam e dormia sozinha na casa abandonada, a primeira de sua família, uma residência de madeira, imensa e bem feita como um barco, viva como como um riso de crianças. Lá, ela brincou no pátio com a multidão de primos que teve e com os porcos, jabutis, galinhas, patos, gansos, papagaios e cachorros que zanzavam em um imenso quintal. Agora o lugar era uma ruína que os pais mantiveram para abrigá-la como um bicho doente. Ninguém entendeu muito bem, o que houve com a criança feliz e a moça linda que ela foi na adolescência.

O fato é que Marília havia se transformado em um fantasma mesmo antes de morrer.

Comia mal, fumava muito, bebia exageradamente, tinha amores clandestinos e imundos no meio do mato com homens absolutamente execráveis. Ela desistiu de estudar e manter a pose de beldade, nunca conseguiu um emprego sequer. Vivia de restos que a mãe lhe dava, inclusive os de afeto. Ninguém era mais maltratado e desprezado que ela.

Com os olhos vidrados de quem perdeu a conexão com o mundo, ouvia os gritos e as ordens ásperas e respondia pouco com o sotaque cantado que nunca perdera. Os irmãos bem sucedidos a ignoravam e criavam um constrangimento constante só por existirem: como ela não conseguiu nada na vida, se eles, criados do mesmo jeito, tinham conquistado o mundo?

Muitos tentaram entender ao longo dos anos o mistério arruinado que Marília ergueu em torno de si. Doutor Murilo, aquele crápula, levou boa parte da culpa. Enquanto ela lhe foi um troféu, viveu e andou com ele em todos os lugares mais finos da cidade e da capital. Quando musa, ela deixou seu lugar e foram viveram em um prédio elegante em frente à Batista Campos, onde ela levava o filho que teve com o homem para brincar e tomar sorvete aos domingos.

A vida boa não durou muito, porque Marília não podia tormar as pílulas e engravidava seguidamente. Na mesma proporção, o doutor a convencia a realizar abortos, e foram tantos que ela perdeu a conta. Quando começou mudar o corpo, foi desprezada. Primeiro esteve muito magra, quase esquelética, depois inchou e ficou com quase cem quilos.

Dr. Murilo a criticava, remetia aos tempos Guerreira Tupinambá do carnaval. Não demorou, ele fez das suas com outras mulheres. Se ela reclamava, apanhava de cinto, como se ele foi um pai carrasco e ela a filha travessa. Até que Marília cansou e voltou para casa da mãe, na cidadezinha onde se sentia mais à vontade e pertencente, onde teve outros filhos e achou outros doutores que também contribuíram para sua desgraça, talvez iniciada justamente com uma promessa de felicidade.

Ainda jovem, ela recebeu um convite irrecusável para morar em Paris com um tio, advogado famoso na época. Correu feliz para contar à mãe e recebeu um não como resposta. Não iria, é muito nova, é muito arriscado, o que tu vai fazer pra lá, teu filho vai ficar com quem, comigo é que não é, tu nem francês tu fala. Tentou argumentar, levou uma pisa. Foi dormir chorando de couro quente.

O tio tentou um arranjo para leva-la e, apesar de todo latinório de causídico juramentado, não funcionou. Dona Raimunda não permitiria e achava uma afronta sair assim que nem desvairada pelo mundo. Ela tem tudo aqui, não tenho filha puta, não. Depois da derradeira negativa, Marília dormiu por uma semana e acordou apática. E, a partir desse dia, as coisas se encaminharam até aquela pedra fria.

No tempo em que separou do Dr. Murilo e voltou, todo mundo entendeu seu estilo de vida franciscano como uma escolha. Os cabelos, antes arrumados, agora eram selvagens. As roupas mais caras passaram a ser muito simples, de início, e depois os andrajos que acompanharam até o fim. Os dentes apodreceram e vários foram perdidos, o que a fazia sorrir de boca fechada o tempo todo. O corpo perdeu toda a harmonia antes elogiada e o brilho vitráceo de jabuticaba no olhar se apagou.

Tinha um negócio de triste e doido nos olhos de Marília e, por vezes, os que a conheceram na juventude comentavam exatamente assim: Marília, ficou doida e triste.

Nunca mais desfiles, nunca mais carrões, nunca mais Dr. Murilo, nunca mais os bulevares, a torre, os cafés, as boinas, as fotos em preto e branco que colecionava da Cidade-Luz com Montmartre, Moulin Rouge, Sena e Louvre. Nada mais. Negligenciou o que pode o filho mais velho, criado na bicuda pela avó. Teve outro já quase velha, sem saber quem era o pai. Era uma alucinada ou uma mulher muito sábia, que não ligava para posses ou aparências, pensavam.

Se eu fosse linda como ela, teria tudo e todos aos meus pés, comentavam as mulheres da cidade quando a viam passar, as mesmas que envelheceram cheias de filho, sentadas no batente das portas de suas casas.

Marília deixou escapar uma única vez à prima, que gostaria de arrumar os dentes e se vestir melhor. Mas dinheiro não havia. Morar em uma casa arruinada, de paredes despencadas e rombos no piso, com os animais diurnos e noturnos a lhe atormentar também não era o que ela queria. Quantas noites chorou de medo com os ruídos das aves adormecidas e das almas que zanzavam entre o quintal e a casa principal onde a mãe, o pai e os filhos dormiam seguros? Havia perdido a conta.

Ao contrário do que imaginavam, nunca teve saudade nem de Dr. Murilo nem da vida que ele proporcionava nos tempos de ouro, porque a crueldade daquele homem em lhe obrigar a sufocar os filhos no ventre e trai-la tantas vezes sem piedade apagou qualquer vestígio de amor que Marília poderia guardar.

Quando as dores começaram a lhe apertar as costas, já comia quase nada. Era uma refeição, quando havia, e um maço de cigarro que o pai não lhe deixava faltar, pois amoroso e também fumante, só que complacente com a amargura da esposa, dona Raimunda.

Mesmo encardida e já novamente muito magra, pergunta-se onde estaria o tio advogado e respondia a si mesma. O tempo havia engolido aquela possibilidade, os primos, filhos dele, estavam criados e agora viviam no Brasil e o tio era um moribundo prostrado em uma cadeira de rodas, que se urinava sem nenhum controle, tinha as mãos trêmulas e já não conseguia falar.

Tinha saudade apenas dos recortes das imagens francesas que guardava e daquele futuro em um lugar imenso e desconhecido com uma luz diferentes e ruas muito largas, sem novena, nem procissão, sem disse-me-disse e picuinhas, longe de tudo e de todos. Não havia mais tempo, ela respondia para si. E não havia, de verdade.

Quem a levou às pressas para o Pronto Socorro foi o filho mais velho, que era a cara do Dr. Murilo. Contorcia-se de uma dor que não sabia exatamente de onde vinha. Foi socorrida horas depois de padecer na fila. Intubada, era grave, muito grave, não sabemos o que é, vai precisar de exames, mas é grave, muito grave.

Agora estava deitada, morta definitivamente, vestida com a bata hospitalar, a única roupa limpa e sem remendos que usou nos últimos trinta anos. Os cabelos da fronte totalmente brancos, os olhos agora sem luz alguma, como já estavam havia uma cara.

O filho fechou o negócio com o vendedor da funerária pequenina na frente do hospital. Foi o mais barato e de pior qualidade. Não porque assim o quisesse. Nunca fora desnaturado. Era o que podia pagar — e nem podia, tanto que parcelou de infinitas vezes o funeral modesto, de flores de papel crepom e pousas velas acesas.

Da capital, Dr. Murilo fez um cheque polpudo e mandou entregar em mãos ao rapaz, que ele quase não via e mal falava, para que Marília fosse posta no melhor caixão e fosse construído o melhor túmulo que a cidade jamais havia testemunhado. Mas a verba chegou tarde. Ela já estava enterrada havia mais de mês quando o homem teve a notícia que havia falecido.

O filho aproveitou e comprou um carro. Ia atravessar o rio para ver o pai na capital.


Vá ouvir Besame.


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O meu tempo inteiro só zombo do amor

Imagem da Casa Pisco. Fonte: Nostalgia Belém

Não sou tão velho assim para morrer de saudade dos velhos carnavais e minha relação com esse símbolo nacional já foi pior. Já detestei, confesso envergonhado, num fingimento de velho ridículo. Hoje sinto saudade de toda música ruim, do fedor de urina nas ruas, de toda pulsão e risco de morte daquela alegria caricata e da possibilidade absurda de lamber e ser lambido por alguém em via pública no meio da multidão. Absurdos impensáveis numa crise sanitária. Quem viveu sabe.

Mas, deixando as lembranças mais recentes em seus devidos lugares, gosto muito, mesmo e tanto, daquele conto do Veríssimo, aquele do encontro dos foliões mirins ano a ano no bailinho. Aí, sim, dá uma nostalgia bonita e até arranca umas memórias próprias, como a da estranha que segurou minha mão em 1986.

Depois que as gêmeas nasceram, minha mãe foi arrebatada por um rebuscamento artístico nunca dantes visto na história desse País. Com um filho menino, ela não tinha muita chance de enfeitar o moleque até não poder mais. Até poderia, mas não era de bom tom. E paro por aqui essa discussão de rosa ou azul, que não cabe tanto debate, não nesta reminiscência suburbana de uma mãe desesperada na tentativa de entreter os filhos de alguma forma no meio do caos e da insalubridade do feriado mais esperado do Brasil. O que de fato importa é que minha mãe estava maravilhada. Com as meninas, a alma de estilista da minha genitora se libertou das amarras da pobre estética cis gênera cheia de amarras da performance da masculinidade compulsória. Com esmero, driblando um orçamento curtíssimo, ela deixava as filhas nos trinques, umas fofuras. No carnaval, então, nem se fala: viravam princesinhas ou odaliscazinhas ou bailarinazinhas ou ciganazinhas idênticas. Elas eram uma graça.

Creio que os gastos não chegavam para mim, porque não me vejo no caldo da memória como um garotinho fantasiado. Recordo somente de umas camisas de viscose estampadas, feitas exclusivamente para o meu guarda-roupa pela costureira da rua de casa, a dona Geni, uma preta cearense que era um ás na máquina Singer, devota do Padim Ciço e adepta de uma boa pinga. Era só meu vestuário ordinário do cotidiano, nada feito especificamente, que o dinheiro nem dava pra isto. Na minha imaginação, eram imitações das vestimentas do Magno, aquele do bigode, aquele do seriado no Havaí estrelado por Tom Selleck. Você não se lembra? Ah, também nem importa.

Desta forma, pobremente arrumadinhos, íamos os quatro para a Avenida Pedro Miranda botar o bloco na rua: elas devidamente adornadas para folia, eu acreditando ser o dono da Ilha da Fantasia, com meu traje escalafobético, fosse no carnaval, fosse em domingo comum de missa das crianças, sempre com o coração tropical e as estampas mais ainda.

Naquele 1986, fomos assistir a folia na nossa Pedreira querida como se estivéssemos indo ao Rio de Janeiro ou a Salvador. Ainda havia alguma inocência e nas trincheiras da alegria só o que explodia era o amor, como na música de Gal. Tinha uma briga aqui e acolá, nada muito grave que a turma do deixa disso não resolvesse. A avenida ficava tomada das comunidades das transversais, alamedas e passagens ali próximas. Gente de sangue quente e riso farto que sustentava o lema do bairro, de samba e amor, no gogó e no gingado. Uma explosão brasileira no tucupi sob o bafo morno da cidade que só era suspenso quando chovia. Neste dia, não choveu. Ou choveu a chuva que nem consideramos de tão insignificante para nossos padrões pluviométricos.

Nos relâmpagos das minhas lembranças, antes do cortejo dos blocos, insisti feito um vendedor de enciclopédia para ver “O homem mais forte do mundo”, com Lou Ferrigno, aquele ator do Hulk. Em exibição no famigerado Cine China (antes Cinema Paraíso, hoje uma igreja da Universal). E minha mãe atendeu, como num milagre. Era no caminho e entramos todos naquele prédio enorme, passando a Mauriti.

Achei que o que me impressionaria seria o brutamontes carregando carros, retorcendo barras de ferro e metendo a porrada em todo mundo. Mas que nada. A película era confusa pra minha idade e em inglês com legendas que a minha leitura jamais acompanharia na época. Nem me liguei pro que estava no telão. Já ao redor…

O que me arregalou os olhos foi o ambiente esfumaçado, cheio de lanternas vermelhas de papel e as pessoas em atitudes suspeitas no escurinho. Homens com suas cervejas nas mesas acompanhados de mulheres, gente escorada nas paredes, alguns aos beijos e outros às gargalhadas, garçonetes pra lá e pra cá, muito barulho e ninguém nem aí pro fortão em cena. Os donos do Cine China eram a vanguarda e implantaram um modelo de sala de exibição misturada com bar e boate que, aparentemente, não pegou e foi extinto nos anos seguintes, quando os pentecostais expulsaram os últimos demônio do lugar para arrancar o dízimo dos fiéis. Fico grato que, pelo menos, pude testemunhar essa iniciativa modernizante e libertina dentro do meu bairro histórico, que pode até não ter dado certo, todavia era muito mais interessante que as atuais e assépticas salas de cinema de grandes redes. Agora se é verdade nem garanto muito, porque esta pode ser mais uma memória falseada ao longo dos anos por mim mesmo. Há de se considerar a hipótese.

Não durou muito meu tempo para captar o lugar e absorver a atmosfera delirante pro meu espírito satírico ainda em formação. Minha mãe cortou a liga quando eu estava deslumbrado com a fumaça de cigarro e as silhuetas dos pecadores. Saímos de lá minutos depois quando ela percebeu ter entrado no lugar errado e na hora errada com as três crianças. Tocou a gente pra fora feito cabritos e seguimos pela calçada cheia de gente para ver a multidão aglomerada mais adiante, próximo à Casa Pisco (hoje uma Sapataria Paraibana), na esquina da Travessa da Estrela.

Minha expectativa maior era ver de pertinho os mascarados do Chupico-pico, gente animada do bairro da Sacramenta. A tarde já esmorecia quando o bloco chegou numa algazarra de assustar. Nos acomodamos no meio-fio. Mamãe segura nas meninas e eu soltinho da Silva, muito independente e atento. Estava de olho arregalado no gorilão ruivo no meio do desfile quando alguém entrelaçou os dedos nos meus.

Senti um certo desconforto e estranhei a mão nem tão pequena para ser de uma das gêmeas nem tão grande para ser a de dona Clarisse, minha mãe. Olhei pra baixo e agarrada à minha mão esquerda estava uma mãozinha clara, delicada, surgida do nada. Era uma menina. Uma menina desconhecida com fantasia de alguma princesa, não sei se do Oriente ou do Ocidente. Não tive coragem de olhá-la no rosto. Tremi, porque percebi, sem muita consciência, que estava em um momento importante, numa paquera de carnaval genuína. O coração em descompasso com o surdo e o tamborim, a bateria todinha do bloquinho dentro do meu pobre peito de menino fisgado pelo que talvez tenha sido minha primeira paixão instantânea, daquelas que evaporam assim que o objeto de desejo desaparece e, ainda que fugazes, deixam marcas difíceis de apagar.

Só sei que passamos aquele desfile interminável de mãos dadas, como um casal de aposentados. Eu, extasiado, numa vontade romântica de que aquilo nunca terminasse, que viesse a quaresma, a Páscoa, o São João, as férias, o Círio e o Natal e a gente continuasse ali, numa boa, mão na mão, presos pela eternidade afora. Do meu lado, a menina muda e firme no propósito de ser minha pequena namorada temporária, adorável estranha. Me perguntava por que ela tinha me segurado. Seria engano? Seria por medo do macaco gigante ou de um bêbado atrás das máscaras? Seria meu charme pueril irresistível? Estaria apaixonada? Sim, eu pensava nessa hipótese passional aos sete anos. As mesmas perguntas que faço hoje, quando uma mulher demonstra interesse por mim ou, por algum tipo de loucura ainda não catalogada, declara algum afeto direcionado à minha pessoa, são as mesmas fiz naquele fevereiro de 1986.

Quando o bloco passou, fomos nos desprendendo com delicadeza e ainda lembro a textura macia, o tom rosado das mãos dela, o suor, a temperatura, os dedos suaves, gordinhos. Olhei-a, finalmente. Ela sorriu, linda, com seu delineado todo cagado. E partiu sem deixar pista alguma. Ou eu estou novamente inventando esse final coerente pra minha alegoria do que se repetiria tantas vezes no futuro? Nunca saberemos.

Fiquei naquela de “quem é você? Diga logo que eu quero saber o seu jogo…” por um segundo e ela se perdeu no meio do povaréu. Nos três anos seguintes esperei na mesma esquina aquele milagre se repetir no meio da confusão carnavalesca. Em vão, claro. Era eu perdido no mundo com um amor de carnaval a maltratar meu coração. E olha que a adolescência nem tinha dado o primeiro grito.

Por onde anda essa moça? Ainda me pergunto.

(Texto originalmente publicado na Revista Leal Moreira, adaptado para este blog e para esta realidade terrível que vivemos).


Vá ouvir o Afoxé do Guarda Xuva Axado


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Um arco no meio do rio ainda de manhãzinha

Foto de Luiz Braga

Mesmo com medo da escuridão, ele foi ao quintal procurar os sapatos, que toda vez largava em qualquer lugar. Ou por graça ou por raiva, sempre por hábito. Saltou pela porta da cozinha e sentiu a friagem lhe doer. Era lua alta e cheia de verão de um meio de maio.

Rodeou o poço, foi até o poleiro, olhou debaixo do assoalho, sem a lamparina. Tateou às cegas mais adiante e achou as botinas na raiz do jambeiro. O par coberto da chuva rosa das flores. Calçou assim mesmo.

Voltou para casa e deu um tapa no rádio. O aparelhou emitiu um anúncio de xarope e, em seguida, uma canção antiga. Pôs o bule no fogão e queimou os dedos. Soltou um caralho no automático.

Vestiu a camisa do avesso e as calças sem tirar os botins. Quase caiu. Jogou a tralha toda na sacola, pelou a língua em um gole descomunal de café e ordenou angustiado: “bora, bora, bora, bora!”.

A mulher estendeu a mão e pediu ajuda para se erguer. Saíram noite adentro, em caminho estreito. Ela cantarolava baixo, como se nada fosse com ela.

No trapiche, encontraram o velho. Precavido, o condutor pediu cinco minutos e voltou com a esposa, desgrenhada. Acomodaram-se. Era só uma travessia rápida.

No arranque, o coração do passageiro contraiu até o limite. No começo da alvorada, a mais jovem, num arfar lento, compassado, crescente, garantia que estava tudo bem, que não precisava de tanta agonia, que era a primeira vez, mas não tinha medo de nada, que doía, mas dentro do esperado, que logo, logo, ficaria tudo bem. E ficou: o rebento não esperou. Nasceu ali, ensebado e pretinho, pelas mãos engelhadas da parteira improvisada, quase viva de tanto sono.

O sol surgiu por detrás das copas das árvores mais compridas e o motor do barco desligado permitiu que eles sentissem o choque dos primeiros cantos dos pássaros e provassem o gosto da luz diáfana daquela hora e vissem a cor do ar gelado de quando nasce o dia no meio do rio.

A mãe chorou um oceano no assoalho de madeira, ainda descomposta e suja, e o pai, incrédulo, guardou aquele fiapo de gente entre as mãos e riu da cara da criança, enrugada como a de um mascate.

A embarcação ficou ali parada por alguns minutos, feito fotografia, depois manobrou num arco na água e levou de volta os cinco pra ilha onde toda gente já os esperava.


Vá ouvir O Uirapuru e Grávida.


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No vinho, a verdade; na cerveja, a dúvida

Photo by D A V I D S O N L U N A on Unsplash

O porteiro me olhou desconfiado de dentro da cabine e atendeu o interfone. Pediu para esperar sem me deixar entrar pro primeiro compartimento do hall, apesar da chuva. Depois de uns cinco minutos, eu já quase ensopado, autorizou. Por coincidência, o irmão dela estava no elevador quando entrei. Junto com a noiva médica, depois de um cumprimento formal e algum silêncio, ele soltou:

_ Bonitão esse sapato. Parece de jogador de golfe. É novo?

Respondi que sim, meio sem graça. Só então percebi que o calçado estava ostensivamente destoante de todo o resto de minha roupa: uma bermuda velha de guerra de largos bolsos para os dias de folga e minha camisa polo já esgarçada e surrada, dessas de 39,90 vendidas em pacotes com duas. Era o que dava pra comprar e não parecer um indigente durante as missões que minha função me impunha.

Olhei no espelho e nossas imagens contrastaram.

Na época, pagava minha penitência nas rondas de polícia à tarde, de delegacia em delegacia, em busca de crimes. Homicídios, estelionatos, roubos, tráfico de drogas eram o que rendiam, como se dizia no jargão jornalístico. De tanto coletar desgraças e transformar em notas para o jornal, de sol a sol, minha pele estava tostada tanto quanto no tempo em que corria pelas estivas de madeira, saltava os cercados de caibro dos quintais alagados e caia nos igapós insaneáveis da Pedreira, numa infância de lombriga, frieira e olhos amarelos. Meu reflexo tinha um aspecto redondo na face e na barriga e minha cor e meus olhos fundos eram de um nativo de Nova Deli. Apesar de ter menos de 30 anos, minha expressão era de cansaço eterno para equilibrar a rotina da redação e os fins de semana alcoólicos de festa e dança nos bares à beira de rio que varavam a madrugada.

Já eles dois pareciam com a tez repousada como a de uma criança feliz no playground. Ambos loiros em seus trajes claros, caros e casuais. Ele era o filho preferido, o orgulho da família. Boas notas sempre, formação em Direito, curso de oratória, ingresso na maçonaria, emprego em gabinete de juiz, ternos bem cortados. Caso morresse, seria daquelas pessoas cujos presentes no velório seriam só elogios. Tão lindo, tão jovem, tão inteligente, tão bom filho, seria um ótimo pai, um ótimo marido, que tristeza, meu deus! Que dor! Ah, morte, quanta injustiça!

De braços dados com ele, ela era uma jovem franzina, pouco mais de um 1,60. Parecia não ter alma e possuía lábios estreitos. Era uma pessoa bege, que jorrava desdém nas poucas vezes que a vi abrir a boca. Odiada pela sogra e pela cunhada, mas sua posição de escolhida pelo rapaz a punha em posição inconteste. Uma vez soube que havia recusado um emprego que pagava dez vezes o meu salário, porque não era perto da casa dela, longe demais das capitais. Fora essa informação, parecia que seria o par perfeito para o menino prodígio.

Além do comentário fashionista sobre meus tênis, não disseram mais uma palavra enquanto nos movíamos até o quinto andar. Saímos e ele abriu a grossa porta de quatro trancas do apartamento.

_ Olha quem encontrei lá embaixo! Desceu do ônibus e nem viu quando passamos de carro pra entrar na garagem!

Assim fui anunciado e ela me abraçou cheia de pudores e um nervosismo discreto. Entrei com cautela no campo minado. Era um imóvel de três quartos, pobremente decorado. Chamava atenção uma cristaleira escura, que não combinava em nada com a mobília mais moderna. Na parede, um quadro borrado comprado avulso por aí. Na estante, fotos de colação de grau, da família reunida e viagens. Uma delas em Paris. Havia muito zelo na arrumação e limpeza da casa, e uma insistência por parte dos moradores em informar que mudariam dali para um condomínio horizontal, em breve.

Era a primeira vez que minha namorada de então me recebia na intimidade do lar. Todavia já tínhamos explorado o prédio prédio antes e trocados amassos numa área em que o circuito de câmeras não alcançava. De calça jeans e peitos pra fora, me disse não, dentro de um lavabo próximo ao salão de festas, no terceiro dia em que começamos pra valer nosso relacionamento sério sem que os demais familiares soubessem.

_ Não pode ser assim.

_ Tudo bem, tudo bem, meu bem.

Não há pressa nem obrigações em casos de amor. E assim ficamos nesse comecinho, entre beijos e masturbações mútuas, explodidos numa paixão que pra mim já era, de certa forma antiga, e para ela nova, declarada, num dia qualquer, por mensagem no MSN, depois de longas conversas que tivemos, eu todo ouvidos, tal qual um homem perdido de amor ou um cafajeste disposto a consumar o desejo com a mulher da vez. Me classifiquei na primeira categoria, porque, naquele tempo, eu era um romântico – graças às desilusões, hoje perfeitamente corrigível.

Fui logo apresentado à mãe, que disfarçou bem o descontentamento imediato comigo, com elogios caprichosos à filha.

_ Está cada dia mais bonita, inteligente. É nossa princesa.

Concordei com a cabeça e quase faço uma piada seguida de um tapão na enorme bunda da minha idolatrada. Contudo me contive e a coroa de curtos cabelos, elegância forçada, aplicações de botóx e avental correu para a cozinha para os últimos preparativos. O cheiro estava excelente e aumentou minha aflição.

Àquela altura da vida, ninguém havia oferecido um almoço pra mim. Mais tarde, descobri que minha certeza sobre o convite pomposo carecia de complemento: de quando em vez o patriarca, com fama de perdulário, fazia um banquete, do nada, qualquer fosse o motivo. Aquele, especificamente, era porque sua donzela havia encontrado um pretendente. No entanto poderia ser por causa da vitória do time de coração, uma promoção no trabalho ou porque o tempo estava limpo e o sol a brilhar. Não era nada pessoal, nada comigo, apenas o hábito da ostentação. Ou a desculpa perfeita para sondar e saber quem era o garnizé que ameaçava colocar a paz da casa em xeque e agora ciscava dentro do terreiro dele.

Poucos minutos depois, o pai chegou, finalmente, na sala de jantar.

Estava de banho tomado, bermuda, camiseta branca, um cordão de ouro pendurado, um sorriso engraçado com a arcada inferior pronunciada, as bochechas avermelhadas e inchadas dos bebedores. Era corpulento, mais ou menos da minha altura, tinha pouco cabelos e óculos horrorosos.

A primeira coisa que me disse, sem mais nem menos, é que estava em um regime de engorda para chegar ao peso mínimo aceito pelo plano de saúde que o habilitaria a uma cirurgia bariátrica. A voz de trovão era de quem sabia tratar bem quando queria e, em segundos, se tornar uma ameaça de instinto cruel capaz das piores atrocidades. Luz e sombras, bem e mal, céu e inferno, vida e morte. Até que gostei.

Possuía um sotaque cearense resistente mesmo depois de muitos anos longe da terra natal. Fingia um jeito simplório pra disfarçar o autoritarismo por hábito. Era ex-militar e agora uma autoridade estadual da lei. O uso do cachimbo deixa a boca ainda mais torta, no fim das contas. Andava armado sempre, embora não deixasse transparecer a arma, uma .40 bonita e pretinha.

_ Sabe como é. A gente não pode vacilar.

Trouxeram o carneiro ensopado. Fumegante. Todos à mesa. A minha namorada ao meu lado estava bela e nós na fase em que a vontade física um do outro é premente, urgente, indecente. Um vestido curto, cabelos presos e batom vermelho. Visivelmente feliz por eu estar ali. Tinha um sorriso amplo, de muitos dentes, que a deixava com cara de psicopata quando soltava uma gargalhada nervosa. No dia, percebi que parecia muito com o pai fisicamente, o que me trouxe alguma tristeza sem que eu deixasse de continuar a vendo como uma beleza rara de quase 1,80 de altura. A mãe com um semblante tenso pediu para que eu ficasse à vontade e me servisse e o casal do ano da Assembleia Paraense, Mister OAB e Miss Estetoscópio, com um jeito blasé havia colocado pouca comida nos seus pratos. Tinha estrogonofe de frango feito especialmente para a jovem médica que não comia aquelas comidas selvagens. No momento em que remexia a tigela para me servir, o velho quebrou o silêncio com a voz de barítono, ainda mais grave, como se a ressaca tivesse afetado sua fala só naquela hora:

_ É bom comer quente.
_ Meu pai diz a mesma coisa.
_ Teu pai faz o quê?

Medi mal e tirei um pedaço grande do bicho. Estava cheiroso e muito bem preparado, e contei constrangido com a pergunta que meu pai era um pequeno comerciante.

_ O senhor sabe o que é um prestação, não é? Meu pai veio do Piauí pra cá, na década de 70. Trabalha com isso a vida toda. Só que agora está parado. Sofreu um acidente grave…

Virou uma taça de vinho de uma vez. Mais cedo, entre o café e o banho, havia esvaziado uma garrafa e meia. Ignorou minha informação e estalou os beiços. Ah…

_ Esse e muito bom. Comprei logo umas dez garrafas. E a tua mãe? 
_ Minha mãe é doméstica. Trabalha em casa mesmo.
_ Mora com eles ainda? Onde é tua casa?

Era um interrogatório. Não havia mais dúvida. Se soubesse, teria treinado em casa antes de sair. A namorada não percebeu, mas apertou minha mão esquerda por baixo da mesa, como quem está numa turbulência de avião. Tomei um gole de vinho e a olhei com ternura.

_ Robertinho já trabalha no gabinete do doutor M., no Fórum. Mas vai ser procurador ou delegado da Polícia Federal. Logo, logo passa no concurso. É nosso tesouro, nosso bem maior. Tem que pensar no futuro, sabe?

O rapaz sorriu de boca fechada e suas lindas bochechas rosadas se avolumaram e os olhos verdes brilharam. A mãe lhe passou as mãos no cabelo. A noiva se arrumou na cadeira, deu-lhe uma bitoca no rosto, toda orgulhosa.

_ E você? Trabalha em jornal, não é? É na televisão? Acho que já te vi…
_ Não, não. Impresso. Papel. Sou repórter.
_ Ah, tá. Já dei uma entrevista uma vez. Não foi pra você. Era o Dilson. Gosto muito dele, muito sério, muito competente.
_ É. O Dilson é gente boa.
_ E o que você quer com a minha filha? Pensa em casar? Quer ter filhos?

O quinto andar não é tão alto, pensei. Lá fora o ruído leve de poucos carros de um trânsito até tranquilo, no bairro de Nazaré. Era um bom dia pra morrer na contramão atrapalhando o tráfego. Comecei a suar e mexer as pernas. No automático, tive vontade de arrancar o que restava das minhas unhas róidas. Minha namorada interveio, com uma delicadeza bem medida misturada com medo expresso no olhar.

_ Papai, pare com isso. Não liga que ele é assim mesmo, tá?

A mãe cortou o assunto e levantou para anunciar a sobremesa, um creme de cupuaçu da melhor qualidade espetado com biscoitos champanhe. Já estava na terceira taça de vinho e minha cara em brasa. Olhei sério para o homem, que estava a um braço de mim. Caso desejasse, poderia me esganar fácil.

_ Quero inicialmente apenas transar com sua filha. Mas um namoro pra mim está de bom tamanho, no momento. Algo fixo e frequente. Não tenho condições financeiras para casar e provavelmente nunca terei. Sou jornalista em Belém do Pará. O senhor me entende?

_ O que você disse?

Obviamente, ele não ouviu meus pensamentos.

_ Que o carneiro estava mesmo delicioso. O senhor aprendeu a fazer onde?
_ Por incrível que pareça, foi em Santarém, quando trabalhei lá. Não é uma receita do nordeste.
_ O tempero é excelente.
_ Lá, era carne fresca. A gente bebia a manhã inteira e umas onze horas, pegava um facão bem amolado e corria atrás do animal pra sangrar e depois preparar. Bons tempos.

Tomei mais um gole de vinho com a imagem daquele homem com uma lâmina afiada e todo ensanguentado depois de matar o pobre carneirinho. A comida revirou no estômago, mas aguentei. Bebi um copo d’água.

_ Remo ou Paysandu?
_ Paysandu.
_ Ainda bem.
_ Açaí com ou sem açúcar?
_ com.
_ também prefiro.

Comeu mais um naco de carne e falou sobre a importância da família, que era tudo que mais prezava no mundo, que era capaz de tudo por aqueles meninos – e mais uma vez olhou apenas para o reizinho e não para minha namorada. Para ele, os fins justificavam os meios para manter a casa e o bem estar de todos em pleno funcionamento. Não falou em nenhuma momento da filha como alguém que estivesse presente. Apenas ideias genéricas de proteção quanto a adversidades, possíveis problemas futuros ou inimigos invisíveis (agora não tão invisíveis assim). Era um homem de bem, ex-vereador pelo PSDB, que respeitava a tradição e frequentava a missa na basílica.

_ Qual a sua religião?
_ Não tenho. Sou ateu.
_ Um homem sem deus não é ninguém, rapaz.
_ Pois é.
_ Tem que se preocupar com essas coisas.

Chupou um fiapo de carne preso entre os dentes e ficou em silêncio para depois tombar a cabeça sobre o peito. Tinha pouquíssimo pescoço. Relaxou os lábios e fechou os olhos. Ficou uma pontinha da língua pra fora. Assemelhou-se a um bebezão. Achei que havia tido um infarto ou uma congestão. Pela reação dos demais estava tudo bem e a cena era recorrente. Uns dez segundos depois, refez-se: abriu os olhos e deu o mesmo sorriso de quando surgiu. Esvaziou a garrafa de bebida de uma vez só. Do nada, levantou-se, arrotou alto e disse que ia ao banheiro. Não voltou mais.

_ É assim mesmo. Ele come vai dormir. Só levanta à noite. Não te preocupa.

Ouvi os roncos na sala. Tentei ajudar a tirar os pratos e os talheres. As mulheres me impediram. O Pequeno Príncipe e a Noiva Cadáver estavam na poltrona maior da sala mudos, de olhos fixos na TV, mãos dadas. Sentei no sofá pequeno e Luciano Huck anunciava que era Agora ou Nunca.

Olhei meus sapatos. Pareciam mesmo de um jogador de golfe. Minha índia de longos cabelos negros como a noite que não tem luar, belas coxas e um quadril redondo. Bilíngue, prestes a se formar, intercâmbio, baile das flores, Disney, odiava o povo do Fórum Social Mundial, que estava acampado na UFRA, naqueles tempos. O ódio emanava da família toda, embora se sentisse uma estranha no ninho e muito diferente de todos dali. Talvez pela sensação de rebeldia e inadequação tenha me escolhido, ainda que de forma inconsciente. Seria eu uma espécie de protesto silencioso feito por ela diante do clã? Não sei. Só pensei nisso agora.

Ela tinha saído do lavabo com gosto de pasta de dente e, estranhamente, me beijou de língua ali na sala de estar. A médica olhou curiosa com algum nojo e o irmão fingiu não ter visto. Levantei com o sangue levemente agitado na região pélvica. Despedidas, dois beijinhos pra lá, depois beijinhos pra cá, muá, muá, vai desculpando qualquer coisa. A sogra mandou lembranças a minha mãe, como se fossem colegas de clube, ainda que nunca a tivesse visto.

Desci de elevador e me encarei outra vez no espelho. Use filtro solar, o Pedro Bial me pedia no poema de sucesso da época. O estômago estava maior de tanta comida e os olhos embaçados de vinho. Nele, a verdade, enfim.

Caminhei até a parada de ônibus. O Pedreira-Condor demorou mais de 40 minutos pra passar, o que nem percebi tal minha anestesia depois do almoço. Quando chegou, pra minha sorte, sentei numa cadeira alta e não deu nem cinco minutos para mudar de ideia. Desci na Almirante Barroso.

Atravessei as três pistas fora da faixa de pedestre e peguei outro coletivo rumo ao centro histórico. Do celular mandei um SMS pra ela, minha flor. O asfalto exalava o cheiro metálico do vapor depois da chuva. O telefone tocou. Vi o nome no visor. Uma, duas, três, dez vezes até que desistiu. O cobrador se incomodou e desliguei o aparelho.

Precisava de uma cerveja gelada, das que arrombam as papilas gustativas antes de descer goela abaixo. O sol já estava de novo a me massacrar de tanto calor. E eu continuava sem acreditar em nada.


Vá ouvir Sem destino.


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O mundo não é um moinho, é uma pracinha de cidade do interior

Entrei no restaurante e estranhei. Estava quase vazio e os garçons, homens brancos de negros cabelos bem penteados, dentro dos seus ternos também brancos, me olharam com alguma curiosidade e simpatia profissional. Engoli saliva com alguma dificuldade e , apesar da noite fria do começo do outono, senti meus sovacos encharcarem, uma leve arritmia e a minha cara esquentar.

O pé direito alto, os arcos clássicos dos portais, a tépida luz amarela dos lustres, a decoração com móveis e antiguidades em madeira escura que, ao mesmo tempo, exalavam um frescor de tudo novo em folha, as toalhas de linho egípcio e os talheres de prata, provavelmente ainda da leva saqueada pelos ancestrais em Potosí. Me vi refletido em espelho próximo a uma cristaleira, a qual realmente guardava delicadas peças de cristal. Meu casaco barato, minha calça jeans, minhas botas de couro sintético, minha barba desgrenhada e cheia de falhas, meu incômodo com a temperatura, nada ornava com a realeza local.

A essa altura da vida, já conhecia as regras que orquestram as posições daquele bando de copos, pratos, garfos, facas e colheres de variados tamanhos e formas e, ainda assim, pensava no trabalho que daria para quem lavaria a louça no fim do jantar. Também era da minha ciência como me viam em ambientes como aquele, a partir da minha experiência brasileira de híbrido social nascido nos igapós da minha gloriosa Pedreira. Todavia era tudo subtexto, pano de fundo, implícito ou mais ou menos inconsciente e não declarado. Ainda que fosse escancarado, minha concentração estava voltada à paella que pediria, segundo um guia local, a melhor da cidade na zona portuária.

Dias antes, no Mercado de San Miguel, em Madri, me perguntaram se era eu mexicano com uma aspereza sutil enquanto esperava meus tapas pra comer ali num dos balcões. Respondi com um portunhol carregado de abuso que não. Minha pele escura, minha deselegância latina, minha cara em um ponto equidistante do Atlântico marcada pela pobreza, gritavam naquelas ruas de colonizadores e balançaram as paelleras de la cocina quando cruzei a porta do estabelecimento para forrar o bucho, agora em Barcelona.

Me acomodei numa mesa próxima a uma das portas imensas que davam nome ao lugar. Era possível ouvir o rugido do Mediterrâneo lá fora. Os barcos atracados ali por perto murmuravam com seus estalos de corda e cascos, o que me lembrava Belém do Pará.

Quando o garçom veio solene coletar o pedido, senti o choque. Não por ele, no entanto. Em uma mesa ao fundo, uma aparição de duas décadas. Estava distante, mas minha memória a puxou de volta de imediato. Havia mudado muito pouco do que recordava. Estava acompanhada de um homem, que parecia um lorde do Norte da Itália pelas roupas e pela beleza. Os dois não tinham modos de turistas de muito longe, como eu. Era um casal que, aparentemente, deixou o sossego do lar para aproveitar uma das últimas noites antes que o frio do inverno obrigasse todo mundo a ficar trancado em casa. Não consegui captar o idioma em que se comunicavam, mas ninguém ali estava num ritual de conquista. Os gestos eram triviais de quem se conhece faz tempo e talvez estivessem em um debate tolo sobre o próximo semestre dos filhos na Lombardia ou na Andaluzia.

Em certo momento, ela sorriu para o marido — eu já havia definido que aquele era seu par definitivo -, e vi pela primeira vez os dentes dela. Só do outro lado do mundo pude confirmar como eram bem cuidados e fulgurantes, como imaginava sempre que ela entrava no Aeroclube pela manhã banhada e ressonada pronta pra ir ao colégio.

Às sete, o ônibus me recolhia na Marquês de Herval com a Alferes Costa e, minutos depois, ela subia na Duque de Caxias, próximo à Perebebuí. Levava duas crianças, que imagino que fossem irmãos menores. Era harmonia e sempre um impacto visual àquela hora da manhã, uma estudante de sonho para mim, apegado ao que a televisão me vendia e bombardeava diariamente como o que é belo e desejável. Era como se tivesse saído direto de um high school da Sessão da Tarde com seus cabelos lisos acobreados e mãos delicadas de unhas polidas e cutículas uniformes, branca como um copo de leite.

Da janela esquerda do último banco, nos fundos do veículo, passei a esperar todo dia que a aluna entrasse para admirá-la. O uniforme era do Gentil Bittencourt, a escola particular com a fachada mais bonita da cidade. Aos 15, eu já sabia que nunca passaria nem perto para para estudar ali — e só estive lá uma única vez, muitos anos depois, como repórter entediado para fazer uma matéria chinfrim ordenada pela diretoria do jornal.

Essa rotina de vê-la praticamente todos os dias durou o Segundo Grau e a acompanhei a se desenvolver como mulher nesses três anos. Já no último ano não entrava mais com os meninos de antes. Os cabelos ficaram avermelhados de tintura e as formas ainda mais sinuosas e harmônicas. Estava sempre sozinha, com um volume enorme de cadernos, livros e apostilas, que um dia nos proporcionou o único contato direto: me ofereci para segurar a tralha num dia de ônibus lotado e ela sem me olhar recusou o favor, com os olhos pregados na janela em direção à rua.

Era minha paixão instantânea preferida no caminho de escola e eu tentava decifrar, dentro do meu silêncio ali atrás, os estados de espírito que ela encarnava no percurso matinal. Como todo mundo, a depender da ocasião, parecia mais ou menos cansada, mal humorada, distraída, preocupada, concentrada, ansiosa, triste, entusiasmada, empolgada, indiferente, apaixonada, rejeitada, melancólica, forte, alegre, triste, enquanto o veículo avançava veloz numa cidade com um trânsito muito mais fluído do que hoje. Era raro, mas acontecia de encontrá-la na volta pra casa, na mesma linha, meio descabelada e exausta, seríssima, sentada com a coluna reta e o nariz helênico.

Depois que o nosso tempo estudantil esgotou, no fatídico 1997, quando reprovei no vestibular, ela sumiu.

Imaginava que ela tivesse sido aprovada em Medicina pelo material que carregava e casado com um mauricinho com sobrenome pomposo da cidade, também médico, e vivesse ainda por perto a frequentar lugares que eu jamais colocaria os pés. Na minha cabeça de então, era o caminho que alguém como ela seguiria sem muito esforço. Minha imaginação era curta e mais ainda para aquela mulher, cuja beleza se misturou às lembranças desse trajeto pueril, num tempo em que eu ainda vivia uma melancolia profunda por ter deixado recentemente a minha escola pública, o refúgio onde cresci e fiz o Primeiro Grau, entre 1985 e 1993, dos 6 aos 14 anos.

Todo dia , ela fazia tudo sempre igual e entrava… não, não entrava. Ela adentrava e retorcia a realidade com sua figura e revolvia toda minha carga hormonal e emocional de manhãzinha, não raro ao som do programa Roberto Carlos em Detalhes, preferido do motorista daquele horário.

Pra mim, era tempo de inseguranças das minhas transformações físicas e mentais num corpo desproporcional, magro, estranho, feio, com uma cara coberta de espinhas que me exilaram na timidez causada pela baixa autoestima. Nem criança, nem homem, solto no mundo, longe do que considerava um abrigo. Tenho certeza absoluta que, se ela dissesse um oi naqueles dias já esquecidos, eu morreria. Morreu de susto e aflição, o pobre. Dentro de um ônibus sujo, ali pela Almirante Barroso. Tão novo, diriam.

Quando chegou a fumegante paella com arroz negro e os mariscos ainda frescos, levantei um brinde com minha companhia. Era um sonho antigo conhecer Barcelona, originado naquela olimpíada já olvidada de 1992, um ano em que estar ali era considerado por mim algo para além do impossível. Era um sonho tolo também comer aquele prato, cujo aroma ainda sinto agora enquanto escrevo. Estava feliz. Aquele acontecimento era um milagre, depois de ter sobrevivido às guerras urbanas das gangues e às estatísticas de preto/pardo da minha adolescência periférica, ter superado a precária educação pública da minha escola municipal e a falta de condições mínimas para garantir a frequência na universidade. Era prodigioso estar do outro lado do mundo no mesmo ambiente em que aquela mulher estava, uma menina branca que, apesar da diferença visível de classe, dividia o mesmo ônibus comigo na capital paraense quando éramos quase infantes.

Ela terminou a refeição e foi embora pouco antes de mim. O casal levantou quando minha sobremesa chegou. Pude perceber que estava ainda mais bonita, como eu previa durante o encanto momentâneo que ela me provocava no passado. Pude registrar, com discrição, o vestido claro, a joia no pescoço, os sapatos de salto, carteira de grife, a pele viçosa trabalhada por um bom skin care. Como em uma trama televisiva iniciada no exterior, os dois alinharam as roupas ao ficarem de pé e ele a ajudou a pôr o casaco. Deram-se os braços e sumiram pela rua. Estavam prontos para estrelar a próxima novela global.

Pensei que mais uma vez estive ali tão perto e invisível para aquela musa temporária, como se ainda fosse o mesmo estudante maltrapilho em um fundo de ônibus, com a diferença, nem tão diferente assim, de agora ser um um adulto mal vestido em um comedouro metido a besta num ritual de aburguesamento e vingança pessoal contra uma vida toda marcada por privações. Simpático como um vereador, paguei a conta salgada sem fazer cara feia e deixei uma boa propina pelo serviço de mesa. Gracias, hombre. Hasta luego. O atendente me sorriu.

Não havia mais porque pensar na passageira mais bonita do mundo, agora perdida para sempre na Catalunha. Ainda assim senti uma dorzinha, um recalque leve, uma inveja incubada do italiano que a conduziu sabe deus pra onde. Maledetto! Era o adolescente desprezado que fui a assumir o controle dos meus pensamentos. Mas a sensação passou rápido. Olhei o entorno e pensei que a vida tinha sido boa comigo. Lá fora a brisa com cheiro de mar que invadia aquela cidade bonita. Entrei no táxi e fui direto pro hotel pra dormir de barriga cheia.

Só voltei a lembrar dessa mulher dia desses, quando estive na minha antiga escola, num desses acasos da vida, e quase sufoco de tantas recordações, sentado em um dos bancos a olhar o prédio modesto e contar as salas que saltei de série em série até a oitava, na Turma 801. A estrutura era a mesma. Contudo estava mais bem cuidada. Nem sinal de pichações e do fedor dos banheiros. Tudo muito limpo, organizado e todos ambientes estavam climatizados, bem diferente da época em que morríamos de medo de perder a cabeça, caso os ventiladores de teto enferrujados se soltassem no meio de uma aula. Na área interna, ônibus escolares amarelos estacionados.

O muro quebrado dos fundos que dava acesso ao matagal cheio de pés de manga, taperebá, jambo e ameixas estava reconstruído; a velha quadra poliesportiva agora possuía um alambrado e estava coberta e protegida das chuvas; a pequena horta onde beijei Débora pela primeira vez e estranhei o hálito das nossas bocas unidas se transformou numa área de educação infantil; o lugar onde Arthur Queixo de Amolar Faca deu uma cabeçada sem querer e quase matou o Bira agora era um refeitório cheio de indicações para manter o distanciamento por causa da Pandemia; a biblioteca da professora Raimundinha estava lá, trancada, com uma plaquinha padronizada a indicar que lá havia livros. Ali que tudo começou, lembrei. O joelho Juvenal, do mestre Ziraldo… Será que Raimundinha ainda estava viva? E o professor Nicolau? E Rita, que me apresentou o Chico Buarque na sexta série? Será que professora Valquíria se curou da ansiedade?

Fiz uma foto da fachada e mandei pelo WhatsApp pro meu melhor amigo da época, hoje um cirurgião-dentista e professor de Física, divorciado e pai de três lindos meninos, cujo mais velho tem a idade de quando eu conheci o pai dele.

_ Lembra disso?

Robson, Marília, Gilmara, Lia, Jose, Luciana, Márcio, Aristóteles, Nazaré, Cleide, Andréa, Kleber, Ismael, Everton, Andreza, Cara de Aborto, Popeye, Dani, Samuel, Tom, Antoniel, Monstrobol, as gêmeas Roberta e Renata, aquela menina do ônibus da escola particular depois que saí dali…

Onde foi parar todo mundo?

A garota do Gentil estaria ainda pela Europa? Quase impossível saber ou encontrá-la de novo. E quer saber? Ainda bem.

O mundo é, realmente, uma pracinha de cidade do interior, onde todos, hora ou outra, vão se esbarrar, mas não muito.


Vá ouvir Detalhes.


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Nunca a vida é o que a gente espera nem acontece como a gente quer

Pablo Picasso dança em seu ateliê, em 1957. Foto: David Douglas Duncan

Em 34 anos dois meses e 17 dias, a contar do batizado do primeiro filho, nunca deixou de cumprimentá-la, muito menos apreciar, insistente, aqueles olhos de tigresa num ar de senhora respeitável cultivado por ela desde muito moça. Era o dia, finalmente, de fitá-los de perto como nunca antes.

Até chegar ali, sempre dosou gestos, cumprimentos e conveniência. Tinha certo pavor de exagerar na corte e entrar no território perigoso do enxerimento. Quando moço, era o medo de ser considerado um tarado mulherengo franco atirador desesperado qualquer. Depois, já gasto pelo tempo, de figurar como o velho babão patético e sem vergonha.

Havia chegado muito tarde naquele flerte, porque ela se casou muito cedo com um prático, ausente, embora amoroso. No começo, aquela ausência foi vista por ele, praticamente (sem trocadilho), como uma oportunidade. Depois percebeu que, por retidão moral ou apego à tradição, aquela esposa jamais olharia pro lado.

Apesar da solidão de quem vive em terra e tem um amor no mar, ela nunca cogitou um amante. Resolvia-se sozinha embaixo do chuveiro e guardava boa energia para as chegadas, depois das longas turnês no oceano, entre a desconfiança contínua contra o esposo esporádico e o desejo de quem está muito tempo arrasada pela saudade.

Ao apaixonado de plantão, restava uma proximidade fraterna e morna, que não passava de um oi na padaria, uma conversa mole ao passar pelo portão, em comentários insossos sobre o tempo, sobre o futebol, sobre as crianças, sobre as notícias, quem nasceu, quem morreu, quem ficou, quem mudou para nunca mais.

Ainda que nessa superfície sem sal, ele sempre fez toda questão do contato, sempre manteve a paciência em alta. Não se feria com o amor que ela depositava no marido e lamentou, de verdade, o dia em que o marítimo morreu num acidente não esclarecido. Caiu do navio e nunca mais foi visto. O corpo ficou perdido numa cidade submersa ou se converteu em comida de tubarão ou foi parar nas rochas de uma ilha da Martinica.

Por muito tempo, na vizinhança, os fofoqueiros insistiam que um dia o morto voltaria, engalado e cheiroso, como um Dom Sebastião, para rever mulher e filhos e informar que estava sim vivo e agora habitava em Amsterdam nos braços de uma ruiva natural 25 anos mais jovem do que ele.

A viúva enfrentou a perda e o falatório com dignidade e o homem que a esperava não pôde consolá-la de imediato, como ele sonhava quase todos os dias, naqueles anos todos. Almejava tanto a morte do marinheiro que, ao saber, sentiu-se tomado de remorso. Teve certeza de que a tragédia foi provocada pelas rezas do avesso dirigidas ao rival. Pedia que ocorresse enquanto ainda tivesse saúde e pudesse segurar a mulher da sua vida em seus braços livre de qualquer estorvo.

Só que nunca a vida é o que a gente espera nem acontece como a gente quer.

A saúde ia até bem. Ele estava na sala, diante da televisão, a mulher ao lado dele no dia em que soube da notícia trágica mais aguardada. Não festejou, porém olhou a companheira e já pensou na hora nos papéis do divórcio. Viviam em relativa paz e até pareciam se amar, o que não significou muita coisa a partir dali. Até assinar e acabar com tudo de uma vez, demoraram quase três anos. A briga foi dura e ele ficou quase sem nada no acordo mal feito ao qual se submeteu. Foda-se. Só queria ter liberdade para, finalmente, tentar com afinco o que sempre quis.

Ainda se resguardou por mais seis meses depois da separação para a primeira investida real na paixão antiga, tão antiga que nem ele acreditava mais que ainda pudesse guardá-la com algum viço. Mas estava lá, viva.

Depois de muitas conversas no mesmo portão de sempre, trocaram número de telefones pela primeira vez em décadas. Ela perguntou se ele usava WhatsApp. Envergonhado, ele informou que não sabia do que se tratava. Funcionário público, ainda era do tempo do fax e da máquina de escrever. Eram esses os instrumentos de comunicação quando pediu a aposentadoria no já esquecido 1994. O celular era um tijolinho, cujo recurso mais avançado era a lanterna. A mulher riu e com paciência explicou a novidade, recomendou a compra de um novo aparelho e que se inteirasse, que não estava morto, nem era peça de museu, ora porra.

Ele obedeceu e aprendeu rápido.

Falavam o dia todo. Em longos áudios e envios de vídeos de gato ou de bebês em situação de alguma gracinha. Riam juntos, quase sempre. Nem perceberam que era hora de avançar naquela conversa de crianças enrugadas. Então, ele, como um cavalheiro do século, fez o convite à dama. Cafona, pomposo, voz empostada.

_ Tá me estranhando?

Ele se assustou, porque, apesar de já ter alguma intimidade, não percebeu a tirada de sarro.

_ Topo, mas a gente sai pra dançar.

Gingado, rebolado, molejo, destreza nos pés, jogo de cintura, nada disso o homem tinha.

_ Claro, que a gente vai.

Chegou o dia. O dia de vê-la tão de perto que sentiria o músculo cardíaco dela retumbar contra ele.

Enquanto se preparava no pequeno apartamento de solteiro que agora morava, ele remoía o que ouviu na última vez que esteve pelo Bar do Alemão: não adianta, meu caro, velhos não se beijam.

Era uma verdade incontornável: velhos não se beijam.

Não tinha parado pra pensar, todavia percebeu justo naquela hora, pouco antes de encontrá-la. Nunca vi dois idosos entregues a saborear línguas e beber a saliva um do outro. Murmurou:

_ Velhos não se beijam.

No máximo, eram umas bitoquinhas, um roçar de leve de lábios, como se as bocas tivessem morrido ou se tornado um local de acesso proibido.

Entristeceu-se.

Os mais de setenta anos lhe abateram com a constatação de que o tempo leva para longe uma das maiores graças de amar. Teve medo de ficar frente a frente com a sua paquera, que, na cabeça dele, era a mesma mulher que o desassossegava na juventude, sem que a visse como a velha que, realmente, era.

Ficou na frente do espelho. Primeiro nu.

Era um idoso quase magro. A pança mole e pelancuda destoava um pouco do resto descarnado. Os peitos estavam caídos e já havia sobra de pele nas coxas. Havia perdido pelos e os que sobraram estavam alvos. O pescoço se mostrava meio seco e as mãos manchadas com pintas de sol. O saco pendia feito com papo de peru.

Agradeceu ainda ter alguma virilidade e se vestiu da melhor forma possível.

Arrematou a gola da camisa, olhou para si pela última vez antes de sair de casa, já dentro da roupa: agora parecia ter poucas rugas e não sustentava nenhuma careca. Ao contrário, tinha uma boa cabeleira acinzentada. Não estava mal para idade. Talvez as sobrancelhas fartas demais, as orelhas parecendo maiores, o nariz sem a simetria da juventude e os olhos opacos. Porém, o geral formava um conjunto razoável. Avaliou e quem sabe passasse por 65. Até 60. Era otimista.

No caminho, recordou quando ele a via de forma eventual, arrumada ao lado do marido viajante a caminho de alguma solenidade da Marinha Mercante. Uma beldade marrom, de cabelos encaracolados, fulgurantes. Estava sempre em vestidos que desenhavam as formas, as curvas de uma mãe ainda jovem, bonita, volumosa, desejável.

Ao rememorar tantos detalhes, concluiu que o tempo não a magoou em nada. Muito pelo contrário, os anos imprimiram a ela uma formosura enternecedora de avó com os mesmos olhos felinos de quem está no começo da vida. Sentiu o bicho da insegurança lhe roer e teve a sensação de que a proximidade atual o tinha transformado apenas em um melhor amigo tardio para dividir aqueles vídeos bestas de Internet e agora a companhia perfeita para o baile da saudade.

Não se deixou abater, não apesar de tudo.

Sem demora estava na frente à casa dela. Perfumado e penteado. Por muito pouco, poderia ter ganhado o adjetivo elegante. Levou um vaso com flores, anacrônico. Ficou com medo de parecer ridículo com rosas. Eram gerânios.

Cinco eternos minutos depois de bater na porta, ela abriu. A primeira reação foi rir do presente.

_ Um romântico a essa altura do campeonato. Vou guardar na cozinha e espero que morram antes que eu pare de rir. Se levo isso comigo, vou perder pelo salão.

Ficou sem graça e suou. Disfarçou bem com um trunfo.

_ aprendi a chamar o Uber. Minha filha me ensinou.

O carro chegou. Aconteceu como havia de ser: continuaram as conversas do dia a dia e tentaram bailar, o que não deu muito certo. Ele se atrapalhava nas próprias pernas e ela gargalhava da falta de jeito dele. Nunca a imaginou como uma exímia dançarina que ela era. Chegaram num acordo para dançar com poucos e vagarosos movimentos, sem firulas, ainda que com sintonia, dois pra lá, dois pra cá.

Era quase uma quando voltaram suados e descabelados, felizes. Na porta, algum constrangimento, mão na mão, silêncio.

Ela tomou a iniciativa.

Um beijo fluído, sincronizado, úmido, com línguas e vontade, mãos na nuca, olhos fechados, desejo no ventre e a respiração pesada de quem esperava por aquele momento.

Pararam aos poucos.

Ele segurou o rosto dela com ternura. Beijou-lhe a testa, o nariz e os lábios, de novo, de leve. Ela sorriu e devolveu com alguma timidez. Disse um adeus abafado perto da boca do homem e entrou com o coração aos pulos.

De sangue quente, o senhorzinho virou as costas e se pôs a caminhar, meio lento, no compasso da idade, o peito agora em brasa. Teve que concordar com o homem do Bar do Alemão, ele estava mais do que certo: de fato, velhos não se beijam.

E voltou pra casa, entre nuvens, no calor da madrugada, a sonhar, de novo, como se agora tivesse seus 20 anos.


Vá ouvir Dois pra lá, dois pra cá.


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