Esquerdomina

Leila Diniz no carnaval do Rio de Janeiro. Foto: Reprodução

Alalaô, ô, ô, ô. Mas que calor, ô, ô, ô.A bunda rebolava bem na frente dele. Enquanto observava o movimento, nem viu que ela olhou pra trás e empinou ainda mais o rabo. Era um fenômeno muscular e adiposo. Duas esferas perfeitas e amplas, com celulites matematicamente distribuídas, mordíveis, das que se exibem a cada pressão enquanto senta e dessenta, como mágica. A hot pant por cima da meia arrastão permitia intuir as duas covinhas no início do quadril, um quadril que se encaixaria como uma peça pré-fabricada nas mãos afoitas de quem agora era só desejo e nada mais.

Era gorda e a macia a mulher. Uma delícia extra large.

De decote comovente, peitos leitosos, de mamilos evidentes e um riso alegre e febril de 32 dois dentes em conjunção plena, enfileirados em harmonia. Os da arcada inferior faziam moldura para uma língua rosa, limpa, molhada e convidativa. Combinava com o cabelo cor de ferrugem. Tinha, no máximo, uns 30. Hipnotizado, acreditou em reciprocidade quando ela deu uma piscadela e jogou um beijo pra depois correr pra perto do trio elétrico.

Ele seguiu.

Tocou Amor de Quenga e ela deu um show. Leve e precisa. Mexia as carnes em sincronia e convicção. Uma bailarina do Faustão plus size. Era amor e fúria a mulher. Virou um copão de uma talagada só. Lambeu os beiços sem olhar pra ninguém. Provou a espuma e se provou, como quem sabe desde sempre como é gostosa em tudo, tanto quanto uma cerveja gelada em dia de calor. Um litro de uma vez e aquela habilidade pareceu ao homem um sinal divino.

Sempre que via a beleza revelada agradecia ao senhor, o mesmo da escola dominical. Só uma entidade superior seria capaz de produzir ao longo de centenas de milhares de anos uma evolução genética tão perfeita e só poderia ser o destino ter colocado aquela criatura no mesmo país, no mesmo estado, na mesma cidade, na mesmo rua, bem ali na sua frente.

Quando o coro de EI BOLSONARO VAI TOMAR NO CU começou, ela engatou junto. Berrava ritmada com as mãos, como quem grita palavras de ordem nas passeatas. Ele tomou mais um golão de batida de maracujá para festejar a descoberta, enfim, de mais um amor da sua vida à distância de um oi.

Vou pedir pra você voltar, vou pedi pra você ficar, eu te amo, eu te adoro, meu amooooooor.

E ela saiu aos pulos, agora levantada pela lembrança potente de Tim Maia. Agarrou uma amiga e tascou um beijo na boca. Nada demorado. Largou e riu da travessura. A outra devolveu com outro, mais lascivo, mais demorado, de língua. Depois se soltaram na desimportância daquela brincadeira de meninas. Ela olhou pra ele e deu um sorriso de canto de boca, maliciosa, e continuou a caminhada sem rumo dos carnavais.

Ele se empolgou e seguiu, de novo.

Já não olhava só pra bunda. Deixou a objetificação em segundo plano e passou para a fase perigosa da idealização daquela esquerdomina maravilha, que organizava o movimento, que orientava o carnaval, não somente no planalto central, mas no centro do mundo. Pensava nos beijos, nos menages, nas DRs, queria dormir de conchinha, assistir Netflix juntinhos, queria um romance pós-moderno, de amor livre, como já tinha ouvido falar. Almejava viagens às chapadas dos Veadeiros, dos Guimarães, Diamantina, ao Brasil profundo do Nordeste brasileiro ou às margens de rios de comunidades amazônicas onde fariam um filme, uma canção, um filho de nome simples, rústico, ancestral e plantariam a própria comida sem sacrifício animal nem glúten.

E olhava aqueles braços roliços e queria um abraço e atá-los na primeira cama que encontrasse para fodê-la chamando de meu meu amor. As batatas da perna de corredora e as coxas grossas com assaduras internas tão lindas e imperfeitas que harmonizavam com o conjunto todo para dar a impressão real de que não era só mais uma paixão instantânea ou uma miragem ou um alucinação etílica. Queria dominá-la, queria prendê-la para si, queria com força, tanta que as orelhas estavam quentes de tanto querer. As diferenças que se fodam, se as houvesse, ele pensou. E as existiam. Mas, tudo se ajusta, porra.

Oh, quanto glitter, Oh, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão.

A hora era agora.

Deu o primeiro passo em direção à deusa fofa, livre e descolada e já estava quase lá quando outro carinha, do nada, se interpôs entre ele e o alvo.

Chegou sem camisa, tênis da Nike e bermuda. Tinha um beque na mão. Tragou e ofereceu a ela, que, de pronto, deu uma bola. Puxou fundo, prendeu, engasgou um pouco, cof, cof, cof, e passou o cigarro para parceira ao lado, a mesma do beijo, uma negra alta, de olhos de amêndoas, black power, piercing no septo e empoderamento em dia. Um tesouro das minas da Guiné.

O intruso tinha quase dois metros de altura. Tórax de Superman esculpido diariamente por seu personal trainer, negra barba escanhoada por profissionais gabaritados (veja que não era qualquer barbeiro) com fios sedosos de, no mínimo, dez centímetros bem penteados com pente de madeira, hidratada e lustrada com cera especial dia-ria-men-te.

O galã usava um Rayban original. O haircut também estava em dia com um degradê pra lá de perfeito. Os dentes alinhados e clareados pareciam roupas brancas em um comercial de Omo. Ele ostentava o sorriso o tempo todo sem parecer forçado ou o Sílvio Santos. A pele do rosto de poros fechados não tinha um mísero cravo sequer, menos ainda qualquer cicatriz de acne ou mancha de sol. Não fosse pelo colar de Havaiano e a purpurina espalhada pelo corpo todo, que o inseria no contexto, ele estaria numa propaganda de relógios de corrida da Apple, facilmente. Correria compenetrado pela pista, à beira-mar, nas montanhas, apolíneo e viril.

Ao ver o havaiano de araque perto da beldade, recuou o pescoço para trás e, em segundos, percebeu-se, voltou à realidade.

Logo notou a barriga de cerveja, horrenda. Já sentia dificuldade de enxergar o próprio pau no mictório. A barba, cheia de falhas, era cortada a tesouradas em casa quando se lembrava ou havia algum evento especial para ir, como o aniversário da mãe. Olhou os pés enlameados, o All Star de 2002 imundo, já sem cor. A polo preta da Riachuelo não ornava com a bermuda de tactel comprada na C&A, que de tão folgada pelo uso deixava os fundilhos lá embaixo. Passou a mão nos poucos cabelos que ainda tinha, sentiu a boca secar. Será que escovei os dentes antes de sair de casa?, perguntou-se. Deu mais um gole e ficou ali à espera da vez.

Sou faraó. Prazer, minha mãe. Sou faraó, passeio sob o sol. Sou faraó, o rei da folia. Sou faraó e o Egito e a Bahia.

Viu os três animados. O havaiano da Smartfit berrava alguma coisa no ouvido das duas e ria. Elas devolviam no mesmo tom e na mesma brincadeira. Então, ele meio que se despediu, como é possível se despedir com o ouvido quase estourado por 110 decibéis de puro axé music e marchinhas.

Mesmo com a autoestima devastada, a esperança do folião se acendeu. Ele já tinha se perdido do pessoal que havia chegado junto pro bloco e agora se encontrava sozinho diante daquela doçura redonda e linda por quem ele cismou de entregar seus coração ou, pelo menos, descolar uma foda certa. Já não cria que seria tão fácil como pensou no começo.

O maldito modelo da Apple virou às costas para ir embora.

Aleluia! É agora ou nunca, vou lá, ele decidiu.

Foi quando a gordinha puxou o bonitão de volta pelo braço e lhe lascou um beijo guloso na boca. Atracou no pescoço e sarrou a xota na coxa musculosa do boy como se não houvesse amanhã nem leis contra ato obsceno em público.

Pra completar, a acompanhante Rainha do Nilo entrou na dança e se perderam num beijo triplo, elétrico, trovejante e desesperado, que nem deus poderia separar. Estavam com o diabo no couro e as línguas enlouquecidas de festa, de desejo, de liberdade em estado bruto no meio da rua.

Tem festa no Candeal, batuque no Canjerê. Eu vou levar meu timbau, tocar samba pra você.

A música ecoou, os foliões rugiram e eles foram tragados pela multidão, já doida, furiosa e esquecida de tudo àquela hora.

Alguém bateu no copo do folião emocionado e ele tomou um banho involuntário. No empurra-empurra, a doleira caiu no chão. Foi-se o celular e o dinheiro. Tentou se abaixar para tentar encontrar e recolher a dignidade, mas era tarde demais. Desequilibrou-se e agarrou sem querer nos peitos de uma bela madame de seus 40 anos turbinada no silicone. Levou um chega pra lá e um safanão do marido que lhe estourou o supercílio. Quase foi preso por assédio e importunação sexual. Atordoado fugiu pra calçada, sem uma banda do sapato nem entender como aconteceu tudo tão rápido.

Sangue nos olhos, literalmente.

O bloco se distanciou e ele caminhou sozinho por uma transversal. Sem ter como pegar um Uber, voltou a pé pra casa, quase uma hora de caminhada. Fogo pelas vendas, nó na garganta do choro de raiva quase pra explodir, putaço da vida. Aquela gorda filha de uma puta, escrota do caralho, feminista vagabunda do inferno, maconheira fedida, amaldiçoou.

Na geladeira, nada, com exceção de meia garrafa de água e uma cebola. Dormiria com fome. Ligou a tevê na Globo para ver o desfile das Escolas de Samba do Rio e estava lá. Seu candidato vencedor representado como um palhaço fazendo arminha com a mão.

A quilômetros dali, a cidade explodia na única alegria possível naquele tempo de desgosto, impotência e muito ódio encruado.

(Vá ouvir Noite dos mascarados)


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1998

Amir Haddad em cena. Foto: Murillo Meirelles

Faz mais de vinte anos que morri e fui substituído por outra pessoa. Lá se vão 22 anos, mais ou menos.

Eu estava perdido, entregue, jogado às baratas, sem saber o caminho nem a verdade, mas, ele me salvou. Aleluia!

Não, não foi Jesus.

Fiz um caminho inverso: abandonei um catolicismo que me aprisionava numa consciência de bons serviços coletivos, mas de servidão e anulação individual, nos dissolvendo como indivíduos, como prega a igreja.

E saí do templo chutando portas. Ou melhor, derrubando paredes, literalmente — um dia conto essa história aqui.

Fui servir a outro senhor, o teatro.

Não me serviu para ganhar prêmios nem dinheiro, nem para ficar famoso — até recebi uma crítica péssima da doutora Amarílis Tupiassu, no jornal, minha maior glória pela minha incursão nas artes dramáticas. Obrigado, professora! E outra resenha maldita do meu hoje amigo Ailson Braga, arrasador nos comentários, perfeito na avaliação como profissional tarimbado da área. Valeu também, meu irmãozinho!

Se não alcancei o apogeu como ator, por outro lado, virei gente.

Lembro de ter entrado no galpão da Humaitá, no meu bairro de berço, a Pedreira, e encontrar o velho, que seria nosso guru.

Vinha manco de uma perna, bigodes e olheiras, já com poucos cabelos e todos brancos. Umas calças frouxas e o sorriso mais frouxo ainda. Era Amir Haddad, o lendário diretor de teatro de rua, fundador do Tá na rua, uma figura mítica da cultura brasileira.

Eu era um garoto de 19 anos. Burro, magro, pobre, sem jeito, tímido e sem graça. Sobravam problemas de autoestima e de dinheiro e faltava ideias do que fazer da própria vida.

A proposta do Amir para o teatro era coisa de doido: a gente chegava no espaço pros ensaios e apenas dançava.

As pessoas entravam para ver porque era ensaio aberto. E estávamos lá, dançando. Eu nem sabia dançar e descobri que ninguém sabe e nem precisa saber. Apenas dançava, seguia a música, qualquer ritmo, qualquer gênero.

Passamos meses a dançar. Todo mundo. As músicas iam de sucessos populares à música clássica, de samba ao carimbó. E, no meio das danças, faziíamos performances, pequenas esquetes, cenários móveis, figurinos improvisados, montávamos pequenas peças, tudo de brincadeira.

Nem sabíamos que tudo aquilo seria incorporado, de alguma forma, no espetáculo Galvez, o imperador do Acre, a peça, baseada no romance do amazonense Márcio Souza, que seria mostrada como resultado daquele projeto de inclusão e cerne para uma universidade popular de teatro.

O teatro comeu minha timidez, comeu minha vergonha na cara, comeu minhas inseguranças, comeu meu medo, comeu o resto da minha crendice, comeu minhas roupas, comeu minhas manhãs na cama, comeu minhas noites na rua, comeu minha preguiça de viver, comeu meu resto de infância com os pés cheios de frieira, me comeu por inteiro e me cuspiu outro. E eu o devorei igual pra vomitar outra vida e ganhar outra forma.

Ganhei malemolência no carnaval que era ensaiar na direção do Amir. Ele mesmo explicou que seu método era baseado nos ensaios de escola de samba. Uma vez o convidaram e ele foi. Observou por um tempo o ensaio começar. Mas, as pessoas só sambavam na quadra. Quando começa o ensaio? Já começou. O ensaio é isso.

O velho dizia coisas nas reuniões no barracão como “cultura e cidadania não estão separadas, são uma coisa só”. “É preciso todo mundo jogar bem pra que apareçam os craques pra fazer o gol”. Dizia para uma plateia que tinha crianças de 10 anos de idade a adultos de 70 anos. Eu estava lá de olho arregalado e olhos mais arregalados ainda.

Um dia Amir contou a história de como percebeu que tinha virado um palhaço, um mero palhaço e como eram importantes os palhaços no mundo, na arte, na porra toda. Não, ele não estava falando do Bozo. Ele estava falando da alma do circo e da alegria como energia emancipadora da humanidade.

Amir relembrou que desobedeceu todo mundo pra ser ator. Era pra fazer concurso do Banco do Brasil e ter estabilidade, ser um bom funcionário, com horário, salário, cartão de ponto, chefe. Mas acabou por ser apenas um palhaço. Um palhaço de rua. Um artista de rua.

Ali, o velho dominou a cena numa conversa e foi uma catarse geral nesse dia. Nesta altura, ele tinha quase 70 anos e falou da própria vida e de como era feliz com aquilo, de como aquele risco de ter largado tudo pela arte o transformou e fez sentido, deu uma vida absolutamente rica em experiências humanas, cheia de amor e luz.

Desabamos ali de tanto chorar com o relato tão forte daquele velho, que tinha virado um irmão, um pai, um avó, um tio, um amigo, alguém que amávamos profundamente, como se ele sempre tivesse feito parte das nossas vidas, daquela e das anteriores.

Me habituei àquela rotina.

Em poucos meses, eu era um vagabundo mambembe com uma trupe de amigos. Daniel e Iuri eram os mais chegados. Andávamos com roupas dos ensaios, meio artistas, meio mendigos, meio palhaços. Comíamos pela rua ou na casa de alguém que nos recebesse. Iuri era o melhor de vida de todos nós, o mais velho, e nos oferecia lautos almoços feitos pela dona Fátima, comida deliciosa. Era ele quem nos dava caronas providenciais em seu Gol quadrado, onde cabiam umas dez pessoas na mala-carroceria improvisada — quase um carro circense.

A esta altura, o dia já era noite e vice-versa. Minha mãe e meu pai queriam me matar: eu acordava meio dia, almoçava e sumia pra aparecer só de madrugada. Esse moleque tá envolvido com droga, com alguma coisa errada. Tínhamos porradas homéricas e dezenas de bate-boca sobre o futuro e trabalho e os riscos da vida.

Minha confiança e autoestima melhoraram tanto que de um quase poeta franzino e arredio, que morria de medo e idealizava as mulheres com musas inatingíveis, virei quase um fauno. Desenvolvi um poder de sedução que, pra mim, era impossível até então. De repente, elas me notaram e, simplesmente, começaram a aparecer de todos os lados. Católico e virgem, aproveitei o que pude. Fazia parte do pacote de se desenvolver como ser humano, como homem, sair da mera curiosidade e me jogar de cabeça no flerte, na conquista, nos beijos, nos amasso, no sexo — cuja primeira vez veio relativamente tarde, mas é parte também dessa fase gloriosa de tantas descobertas.

Aliás, a força da sexualidade era um dos motes do teatro de Amir também. Trabalhar essa energia e esses arquétipos, entendê-los e liberá-los nas suas mais diferentes manifestações. Cada um com seu entendimento. Confrontar a diversidade sexual daquele grupo tão heterogêneo sem nenhum medo ou preconceito. No limite, do que hoje, talvez, fosse considerado uma enorme imoralidade e motivo de escândalo.

Em meio a essa farra toda do corpo e dos sentidos, estudávamos também. Líamos bastante, principalmente, teatro — foi uma época que devorei tudo de Nelson Rodrigues que caiu nas minhas mãos. Escrevíamos alguma coisa — nesse tempo ouvi, pela primeira vez, que me expressava bem com palavras, muito além dos bilhetinhos infantis que mandava pras meninas, minhas paixões pueris.

Montávamos peças e performances e apresentávamos nos ensaios. Criamos um grupo alternativo para fazer detestáveis “telegramas vivos” e era um barato invadir bares, casas e restaurantes pra “homenagear” aniversariantes. Também ganhamos dinheiro com o Zecão, meu querido Zecão do Experiência, que nos convidava para participar de peças encomendadas por empresas e escolas.

Vivemos uma ilusão de uma comunidade coesa, de umas 60 pessoas, no final do processo todo, embora nosso núcleo mais próximo agregasse, no máximo, umas sete. Éramos novos hippies em Belém libertos e desenvolvidos pelo teatro numa cultura dionisíaca, perfeitamente, preparados para enfrentar a vida e os desafios de ser artistas.

Amir havia conseguido no meio daquela doidice toda. Tinha nos doutrinado e incutido uma consciência política da nossa força como cidadãos. A gente estava com tudo e não estava prosa. Sabíamos agora, por fim, que a arte, uma vida boa e o direito à felicidade eram direitos de todos. Não queríamos menos nunca mais.

Quando o espetáculo Galvez estreou, em novembro, foi um fiasco.

Foram onze dias difíceis e só afinamos a apresentação lá pelo quarto dia da temporada única. Os críticos do projeto, que era financiado pelo governo estadual, caíram de pau. Chamavam de lixo, de porcaria, de tudo que não presta. Mas, levamos até o fim. Amir ficou arrasado, eu lembro. Até adoecer, ele adoeceu.

O último dia da apresentação choramos muito, todos nós: moças e rapazes, anciões e infantes. E nos abraçamos na despedida. Foi uma jornada absurda e violenta pra cada um.

Lembro-me bem do menino Pirarucu. Era magrinho e da cor dos índios, como eu. Brincávamos que ele era uma versão menor minha. Um pequeno Anderson, um filho. E nos apegamos tanto a essa brincadeira que, quando a peça terminou, ele correu aos prantos pra me abraçar. E choramos ali aquele fim e começo de outras histórias.

Terminava ali uma família de doidos e partia o Amir pro Rio de Janeiro, para nunca mais. Ficamos órfãos e sem saber o que fazer, mas a vida se encarregou do resto.

No ano seguinte, parei tudo pra estudar e me tornar jornalista. Agora já com um esboço bem acabado do que eu viria ser, pensar e fazer. Seguro de mim, não deixei que pensamentos negativos nem pessimismos de outros me impedissem de fazer o que fosse preciso pra melhorar de vida. Ninguém acreditava muito que eu passaria naquele vestibular concorrido numa universidade federal.

Um pobre na faculdade? Mas, quando já. Não havia bolsas nem programas de acesso. Faltavam ainda dois anos para Lula se eleger presidente e implantar os projetos de educação que permitiram que a gente pobre entrasse nas universidades. Não para limpar salas ou banheiros, mas para estudar.

Em janeiro de 2000, passei em 11° lugar em Comunicação Social e na Universidade Federal do Pará aos 21 anos, já atrasado, como em tudo.

Era o primeiro do meu nome, o pioneiro da minha família a chegar lá, um ex-vagabundo, contaminado agora pra sempre com o vírus que assombra a alma dos artistas. Minha mãe chorou. Era um novo futuro que surgia pro filho errante.

E foi assim que 1998 mudou tudo até hoje.

(Vá ouvir Piruestas, de Chico Buarque)


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De guarda-chuva no Red Light

Red Light District, famoso bairro de Amsterdam (Arquivo pessoal)

Dois euros por minuto e fiz uma conta rápida. Cinco minutos seriam o suficiente. Na minha frente, três brasileiros, de uns 20 e poucos anos, riam com uma garota. Estavam em frente às cabines. Ao redor, muito neon em rosa, roxo e vermelho e cartazes envidraçados a cobrir as paredes com mulheres nuas em diversas posições. Algumas com parceiros e parceiras no ato sexual. Quase todas loiras. Recordei as velhas seções escondidas de pornografia nas videolocadoras.

A estética remetia de verdade aos anos noventa e os aluguéis de fitas para adultos quando a Netflix e a Internet ainda pareciam coisa de ficção científica: o sexo encenado e performático, as pessoas ultra sexualizadas, músculos definidos, pele uniforme e brilhante, cabelos irretocáveis e expressões sensuais, lábios entreabertos, olhos desafiadores, pontas de língua provocantes. À minha volta, uma máquina para trocar cédulas de papel por moedas e, principalmente, homens, tão curiosos como eu com aquela diversão criada a partir da profissão mais antiga do mundo. Já ali, as coisas começaram a perder o sentido.

Um dos rapazes brasileiros entrou pela portinha com a moça e os dois ficaram de fora depois de longa negociata. Quanto custaria, quem entraria primeiro, o que era permitido fazer, por quanto tempo. Depois que a salinha se fechou, a dupla que aguardava deu pulinhos e arreganhou os dentes, como crianças que vencem uma partida de travinha no meio da rua. Meninos brancos do Brasil a brincar no que a Europa oferece como brincadeira. Um deles tentou espionar, sem sucesso, o que rolava depois de a porta trancada.

A poucos metros, um casal, mais velho, de braços dados, olhava com certo interesse os produtos, como se estivesse num supermercado ou parque de diversões. Pararam diante das cabines que exibiam vídeos eróticos. Olhei de soslaio o ambiente: uma TV e um painel para escolher os filmes, uma poltrona, toalhas de papel e um cesto de lixo para os masturbadores jogarem seus detritos depois do alívio. Sumiram para outra área da casa, que parecia um labirinto.

Quem paga parar ver fora de casa um vídeo pornô ainda hoje, depois de Xvideo, Pornhub, Redtube, Charturbate e a infinidade de sites e serviços disponíveis na palma da mão pelo smartphone? Um senhor, de uns 60 anos, calvo e trajado de casaco e escuro, camisa azul marinho quadriculada, ar sério e desconfiado, provavelmente europeu, surgiu de uma das cabines. Estava nele a minha resposta.

No outro lado do hall de entrada, havia outras portas para os peep shows e uma placa de alerta em inglês: PROIBIDO MIJAR NAS CABINES, SUJEITO À MULTA DE 150 EUROS, caso alguém confundisse a expressão peep com o verbo pee.

Entrei em uma das saletas igual a dos garotos do Brasil e, só então, percebi que estava ridiculamente com um guarda-chuva a tira-colo.

Desde que havia descido em Beijmer e apanhado o metrô para Waterlooplein, a chuva não havia dado trégua no meu primeiro dia. Atônito depois de quase três horas de sono durante a viagem de ônibus, saltei meio apavorado e perguntei para o motorista, com o inglês que me restava, se estava na minha paragem. Yes, estava. Lembrei-me que, em Bruxelas, havia adquirido o objeto para andar pela capital belga a pé. Com o inverno quase no fim, a chuva imperdoável e insistente, tive que lançar mão desse artifício e o carreguei pro próximo destino, mesmo com ódio no coração pelo trambolho.

Olhei o lugar. Outro menu, agora com belas mulheres e um casal. Um banco forrado com napa e os utensílios de limpeza previsíveis para quem fosse se masturbar por ali. No chão, a confirmação de que o material tinha serventia real: perto do cesto esperma recente e papeis úmidos. Na hora, meu rosto contraiu de asco. Mas, persisti na experiência. Não sento nesse banco nem por decreto do rei holandês, pensei. Evitei chegar perto do líquido viscoso e sujar meus sapatos.

Girassóis, de Vincent van Gogh/Museu Van Gogh (Arquivo pessoal)

Enfiei a mão no bolso e puxei as moedas para usar no dispositivo eletrônico. A mais vistosa das mulheres, uma morena esguia de longos cabelos negros e seios esféricos cirurgicamente implantados, estava ocupada. A segunda também, uma rainha africana exuberante de volumosa cabeleira, e a terceira idem, uma ruiva curvilínea e rosácea. Restaram duas moças e a dupla. Optei por uma de grandes seios e longas pernas, maçãs do rosto altas e longos cabelos amarelos como os girassóis do Van Gogh. Ou eu já tinha visto aquela tonalidade na boate Locomotiva?

Minha atração lúbrica começou muito cedo. Aos cinco anos, uma menina mais velha, que morava na minha rua, me chamou num quarto para ver uma grande novidade. Corre aqui, ela disse. Na minha lembrança, a alcova parecia abandonada. Recordo que subi escadas e o lugar estava revirado. Uma cama de solteiro e alguns móveis desmontados, roupas e papeis espalhados pelo chão. O teto alto de amianto, as paredes de tábuas com as frestas esparsas que permitiam entrar a luz e o calor da tarde. Embaixo, funcionava uma pequena manufatura, onde a mãe dela mantinha um negócio familiar de venda de temperos diversos. Ainda hoje associo o cheiro do alho fresco, do coloral e da pimenta-do-reino a essas coisas.

Em tom de segredo, ela puxou uma revista de uma caixa de papel e me mostrou o conteúdo. Era uma fotonovela em branco e preto. Em uma das páginas, duas mulheres nuas se beijavam na boca. Seios, púbis, bunda, línguas. Aquilo me baratinou e senti, mesmo naquela idade, o sangue ferver e correr mais rápido, sem entender muito bem os motivos. A anfitriã me olhou e confidenciou que aquilo lhe dava vontades e queria fazer o mesmo comigo. Compreendi a mensagem, mas, não, não estamos em um conto erótico, nem numa pornochanchada. Senti um terror real , não sei explicar exatamente do quê, só sabia que era errado e que não queria pra mim. Desci as escadas na carreira, quase chorando, o músculo cardíaco no limite embaixo do meu peito franzino.

Bem mais tarde, na escola, tive acesso a desenhos pornográficos e toda aquela iniciação oral que moleques da minha idade passaram. Os mais velhos e mais mentirosos contavam casos e casos com primas, com colegas, com tias mais velhas, com vizinhas, com empregas domésticas. Eram eles seduzidos ou sedutores em quintais, matagais, dispensas, muros e até embaixo de assoalhos, atrás de sentinas, em cima de árvores. Uma farta e pobre literatura falada de pequenos machos a idealizar e inventar as delícias do sexo precoce. Calado eu ficava por não ter nada o que contar e ouvia as histórias com os olhos no futuro, quando chegasse minha hora.

Uma coisa eu sabia: não queria daquela forma, como aqueles relatos. E por algum motivo, que desconheço, por longos anos associei o sexo ao amor romântico e fantasiei a primeira vez com uma namorada bonita que me amasse loucamente e fosse tão virgem quanto eu, juntos a descobrir aquela coisa toda de se aventurar no corpo alheio. Nunca aconteceu como sonhei — ainda bem.

Minhas incursões em apreciar o corpo feminino começaram nas clássicas — e comportadas para os padrões de hoje — Playboys nacionais compradas em bancas de revista. Devia ter um 13 anos quando adquiri, com o coração palpitante e o pau duro feito um osso, a revista com a loira do Sul e prima do jogador da seleção de futebol, Fábia Taffarel. Levei-a escondida para casa e a sensação de ver aquele corpo tão perfeito e diferente de tudo o que havia visto foi, realmente, um impacto físico e mental sem precedentes.

Outras revistas vieram, mas eu adorei aquele altar de papel por muitos e muitos litros até que a coleção foi desfeita, vendida para um sebo a fim de angariar fundos para uma das primeiras viagens à praia, em Mosqueiro, que fiz com um grupo de amigos e sem a presença dos meus pais. O que, no fundo, também tinha motivações sexuais, da sorte de iniciar um flerte, conseguir um “quebra” (um amasso na gíria da época), uma paquera e, se a vida fosse boa, até quem sabe iniciar nos mistério da transa. Obviamente, não rolou.

Minha geração, talvez a última, ainda viveu a fantasia masculina da iniciação sexual com prostitutas. Relatos de moleques na casa dos 15 anos que foram aos puteiros começar essa vida errante, alguns pelas mãos de pais e tios para honrar uma velha tradição e “virar homem” — um equivalente social da etiqueta do machismo latino-americano aos bailes de debutantes destinados às mocinhas da mesma idade.

Comigo nunca aconteceu e me mantive longe desses redutos de pecado por muito tempo. Até o dia que uns seis ou sete amigos resolvemos que conheceríamos todos os lupanares da parte mais antiga da cidade. Em uma única tarde de chuva, entramos nos clássicos Altas Horas, Beiradão, Barroco e Chuá, espalhados entre a Campina e a Cidade de Velha, e no extinto Lourival, atrás do Bosque Rodrigues Alves.

O Chuá é o que tenho memória mais nítida. Uma espelunca que rebebia comerciantes, feirantes e peixeiros do Ver-O-Peso. Onde chegamos e tive uma visão repulsiva de uns quatro homens em cima de uma única mulher esperando para fazer sexo oral nela, ali na frente de todo mundo, no que era o salão do lugar. A mesma puta, paga por um amigo meu, dançou na minha frente e ofereceu o serviço, sensual no meu ouvido, por módicos dois reais. Elegantemente e, mais uma vez, apavorado, recusei a proposta.

Depois desse tour, fomos muitas vezes em outros prostíbulos. Aquele ambiente de homens, a maioria, solitários e derrotados, garçons entediados e mulheres de uma beleza cansada, com olhos desesperados à espera do próximo freguês, de alguma forma me fascinava. Aos poucos tive contato com as histórias terríveis de misérias e abusos, de necessidade e rebeldia. De filhas de vereadores de cidade do interior, de esposas de traficantes internacionais que estavam presos, de ex-deusas da beleza e misses que caíram em desgraça, de mães pós-adolescentes que precisavam alimentar os filhos, de mulheres que carregavam famílias inteiras nas costas com o dinheiro da prostituição, de lindas patricinhas que pagavam seus luxos e frescuras com a féria de cada noite, de universitárias dedicadas a saíram daquele inferno do sexo remunerado, de caboclas perdidas na capital em busca de um prato de comida ou uma carreira de pó, de conhecidas que nunca imaginei que pudesse ver naqueles lugares.

A pouca luz, a fumaça, os riscos, os sussurros, o imprevisível de estar ali, tudo me atraía. Sem muita consciência do contexto maior que envolvia aquele submundo, eu gostava de entrar e observar, sempre a cumprir minha regra de outro do personagem flutuante que jamais paga por sexo. Até conhecer R., cuja história, com muito exagero, alguma poesia e pouca técnica, relato no livro Bêbado Gonzo e outras histórias, no conto Locomotiva, a casa de tolerância onde nos conhecemos e eu me apaixonei por ela pra viver uma relação curta, de alguns meses, mas profunda e memorável. Foi ela, então, minha Lúcia McCartney nos meus limites nada grandiosos como os de Rubem Fonseca.

Auto-retrato de Van Gogh/Museu Van Gogh (arquivo pessoal)

Agora eu estava na Holanda. Em uma casa de show típica do Red Light District e aquelas luzes eram pra mim parte dessa memória afetiva e dessa curiosidade já saciada, mas não de todo. Minuto depois de inserir a moeda na maquineta, a mulher apareceu. De lingerie preta e vermelha e meias três quartos. Pouco a ver com a foto da apresentação, como em uma propaganda enganosa do McDonald. Parecia muito mais velha, a maquiagem já desbotada, os cabelos desalinhados e opacos, a tez ressequida e sem brilho. Uma europeia maltratada pelo salitre naquele região abaixo do nível do mar e pelas noites insones no bairro da Luz Vermelha.

Me senti ridículo com meu guarda-chuva, meu sobretudo e meu inglês macarrônico depois que ela disse boa noite por trás do vidro e explicou como funcionava o serviço. Ao contrário do que imaginei, o valor do show era estabelecido em negociação com ela: trinta euros, que eu apenas acatei calado sem qualquer barganha.

Os dois euros colocados na máquina serviam apenas para que ela surgisse detrás da cortina e desse a informação e negociasse a exibição. Não seriam dez euros por cinco minutos, como havia pensado quando fiz o cálculo ao chegar. A garota explicou que, pela quantia acordada, tiraria toda a roupa, dançaria pra mim e usaria um vibrador na buceta ou no cu enquanto eu a assistisse. Ela continuaria a exibição até que eu gozasse.

Ouvi atento a explicação. Devolvi com um pedido de desculpas por ter entendido errado as regras do jogo. Ela sorriu de volta compreensiva e disse tudo bem, acontece, see you soon. Thank you. Saí meio envergonhado e olhei ao redor, não com os olhos do menino de 5 anos, nem do adolescente comprador de Playboys, menos ainda com os do frequentador de puteiros baratos ansioso por experiências antropológicas de anos atrás em Belém do Pará. Era outro homem, agora sozinho, envelhecido e com alguma experiência de vida nas manhas do sexo e do amor e do moedor de carne e chamado tempo.

Havia compreendido, em um nível satisfatório, a frieza e a tristeza daquele tipo de exploração para as mulheres. O por trás daquela fantasia over de prazer barato naqueles lugares enfumados, luminosos, de paredes pretas e abarrotados de homens sedentos por exercer seus pequenos poderes de consumidores. As ilusões de macho que paga para depositar suas frustrações e seus anseio por um gozo alienado de qualquer coisa. Pensei como seria engraçado estar ali há uns 20 anos. Agora era só uma sensação esquisita, que não virou tristeza porque estava a passeio com o objetivo pré-definido de ver tudo aquilo que vi.

Abri meu guarda-chuva e fui explorar as ruelas do bairro. Pequenas romarias de turistas, leões-de-chácara mal encarados, sexshop, museus temáticos, coffee shops, traficantes de cocaína e heroína, bares e restaurantes entupidos de clientes. Fui direto ver de perto as mulheres de frete, expostas nas vitrines, uma mais bonita do que a outra, com suas maquiagens, silicones em peitos enormes, micro calcinhas e piscadelas e sorrisos de sedução, tudo muito diferente e, a mesmo tempo igual, como eu imaginei.

Em todas as vitrines, a ordem para não fazer imagens e respeitar a privacidade das trabalhadoras do sexo. Lá dentro, as belas raparigas e detrás as camas onde atendem homens do mundo todo. Uma delas, em uma das ruelas transversais ao canal, sozinha por trás do vidro, me chamou a atenção. Visivelmente contrariada, lindamente vestida, tristemente cabisbaixa. Não deveria ser uma boa noite ou, o que é mais provavelmente, nunca deve ser boa noite para ela naquele tipo de trabalho.

Era hora de ir pro hotel, um velho prédio à margem do Herengracht, um dos canais escavados ainda na Era de Ouro Holandesa. Antes entrei em um coffee shop para comprar um preparado da melhor cannabis que eles tinham, recomendado por um residente de Amsterdam, um simpático atendente português de dreadlocks que encontrei numa loja de suvenir e me deu o caminho das pedras.

Já era madrugada. Acendi meu baseado já pronto, porque não sei bolar, e pensei que era a primeira vez que comprava maconha na vida. Justamente, em um país em que a produção, a venda e o consumo são legalizados. Uma subversão regulada de alguém atrasado e fora do compasso.

Puxei, prendi, baforei.

Enquanto eu caminhava, pensava nas voltas que a vida deu nos últimos anos ao longo do canal. Fazia uns sete graus, minhas mãos doíam de frio, pessoas passavam com seus grupos, riam e falavam idiomas que eu não compreendia. Já perto do meu quarto, senti um relaxamento suave e o mundo um pouco mais lento. A visão ficou um pouco mais embaçada e fluída e minha dor do torcicolo desapareceu, como em um passe mágica.

Bateu.

Achei engraçado estar absolutamente sozinho do outro lado do mundo, em Amsterdam. Ri contido para não parecer um maconheiro idiota. Era meu aniversário de 41 anos.

(Vá ouvir Eu vou tirar você desse lugar, de Odair José)


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Rugas

Arquivo pessoal.

O choro rebenta no parto.

O velho alquebra, lasso.

Estrondo, silêncio.

Tiro certo, passo em falso.

Folia, Páscoa, São João.

No Whatsapp: má notícia do irmão.

Um conhecido morre,

um amigo casa.

Uns se vão, criam asa.

Pelos brancos nas narinas.

Vermelha, menarca, menina.

Muda-se de carro,

de casa, de roupa.

A vida, alto e baixo,

Acaso e sina.

No poema: prosa;

fim de rima.

Um doente na UTI

e um são de volta à boemia.

Flores murcham, piora o tráfego.

É meu aniversário, ansiedade de festa.

Envelheço sem retorno: rugas na testa.

Natal, ano novo, lusco-fusco.

Giro o mundo, de Berlim à Belém,

No fundo, quero meu velho quarto.

Não há para onde voltar.

Não há infinito que me caiba,

Nem colo que me abrigue.

No caminho, um enterro,

Uma explosão, uma algazarra, uma algaravia.

E olhos melífluos, diáfanos, análogos à escravidão.

Lábios, pequenos e grandes, a me abocanhar.

Saudades incuráveis, palavras inauditas,

Paixões à distância, amores encruados,

Impossíveis e estirados à luz de um sol tropical.

Nenhuma lágrima às claras, nenhum drama às escuras,

Apenas a estrada e o todo enfiado numa mala de mão.

A dor nas juntas, os dedos duros, tesos,

diabetes, trombose, cancro, verrugas,

problemas do coração,

(Os de sempre: desatino, desamor, solidão.)

A casa imensa, sem filhos.

O tempo de sobra, a saudade na mordaça.

É fevereiro de novo e setembro me abraça.

Outro livro morre esquecido no Google Drive,

mais um romance mal escrito, outra crônica ignorada,

um poeta (óbvio em tudo) enlouquece,

um best seller compra uma casa no subúrbio de Paris,

condomínios de traças na estante, uma praia de mofo nas capas de couro

e um céu esverdeado de nódoas nas páginas amarelas.

Casam-se noivos, de novo,

desfazem-se pares, lotam motéis,

esvaziam altares, encruzilhadas, terreiros.

Traições, divórcios, partilhas.

Na zona saem as mães, entram as filhas.

Os bares fecham para sempre,

novas farmácias iluminadas,

a cidade apodrece à distância.

Dentro de casa, uma vergonha do tremor nas mãos,

da audição atrabiliária e do rosto devastado de vincos.

Um frio permanente, a manta sobre os ombros e a xícara de café amargo.

Será se fechei a janela?

Uma voz me chama na cozinha: ninguém.

Não é o Paulo Fruteiro passando na rua?

Morreu em 2006.

As manchas nas costas das mãos na máquina de costura,

Os joanetes dos pés fora da rede de punho estourado.

A fila do banco, o cenho franzido,

aposentadoria nunca mais, subida no ônibus pela frente.

É insônia de noite, nenhum sono de dia,

O arrasto da tarde e da madrugada.

Aparar os pelos da cara,

Podar paixões olvidadas,

Perder amizades natimortas,

Abraçar os amores senis.

Um casarão centenário se arruína.

Jovens casais, sacadas gourmet,

boletos e mais boletos até o fim,

em um final de março ou começo de outubro.

Fotos no Iphone,

Superlikes no Tinder,

uma viagem inútil te enche de orgulho fingido,

uma cama vazia, a cabeça cheia, a alma devastada.

Uma caixa do supermercado ama calada.

Um contador berra de ódio no vão da escada.

Um motorista planeja matar e morrer.

Uma freira sonha em ser livre.

Um louco balbucia no trem,

Uma médica descobre a cura da aids.

Uma criança olha as estrelas,

Um velho morre sozinho.

Não envio o e-mail desaforado,

Não entrego a carta de amor,

Desisto de vez do poema,

Acho de vez o caminho.

A multidão me engole,

a imensidão me arrebata,

a morte me espreita

e a vida me leva.

Para sempre.

(Vá ouvir Que Pasara Mañana ou Quando Chegar o Amanhã)


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Daqui te escrevo

Arquivo pessoal

Já faz um ano, meu amigo. Ainda te lembras? A aflição das malas, as horas anteriores em um quarto de hotel em São Paulo, a madrugada fria na saída do aeroporto, o corpo entorpecido pelo ar viciado do avião em mais de dez horas de voo, os pulmões invadidos pelo ar novo no novo país.

Mas, nem é isso.

Destas coisas sei que não te esqueces. Te conheço há muito tempo. Sei que a memória já não anda lá muito boa, mas ainda impressiona pela captação de detalhes inúteis. Sei, por exemplo, que recordas da cara do taxista e do valor da corrida até a Estação Oriente — depois descobriste que de metro (sem acento circunflexo) seria muito mais em conta. Um primeiro ódio amalgamado no teu novo lugar.

Sei da tua insônia e do teu desconforto no banco de autocarro, como eles gostam de chamar os ônibus por aí/aqui. Um homem enorme e gordo veio entalado no assento detrás a pressionar o encosto da frente. Encolhido, amaldiçoavas a viagem. Talvez a maldição traga consequências. Tenha algum cuidado, modere as palavras. É uma recomendação daqui, de onde te escrevo. Vais precisar de alguma paciência e ponderação. Serás mal interpretado tantas vezes quantas forem necessárias para compreenderes que é viajar é preciso. Já a língua, não é precisa, de forma alguma.

Vejo ainda teus olhos cansados na manhã que brotou gelada em Fátima. Lembraste de tua mãe e de tua avó. Dos terços e dos pastores. Da pobre Lúcia e do segredo. Juraste sem fé levá-las ali, na antiga aldeia, hoje um meio de caminho para peregrinos pagãos como tu. O corpo moído se despertou com as luzes da primeira ponte. Estavas lá, finalmente. Chegaste. Em um porto totalmente desconhecido. E a claridade impressionou.

Não sabes dizer bem se foi o gosto do novo, o cheiro de maresia ou os raios solares que provocaram a sensação. Aposto que foi a soma de tudo mais o pavor de nunca ter posto os pés ali e estares, irremediavelmente, sozinho, como planejaste. Destas coisas, eu sei. Daí, meu spoiler pra ti, que nem desconfia ainda.

Conte, enfim, o que já sei. Aprendi aqui da frente a re-ouvir. A repetir histórias. Dia desses, me comoveu um verso que dizia “Repetir, repetir, até ficar diferente. A repetição é um dom do estilo. É um acerto e tanto de Manoel, um Manoel não português e, encantadoramente, brasileiro, como nós. Então, se repita para nós, nós dois. O que posso dizer daqui também já sabes, como já sabes da minha visão realista e um tanto seca sobre os acontecimentos, uma certa indigestão diante da vida e dos fatos, uma acidez ardida pra os que não fazem ideia do coração mole e doce que temos. Acho mesmo que foi aquele poema que comemos ainda no Segundo Grau. Caiu mal, caiu bem, caiu a ficha, graças ao nosso senhor bom deus, que nem cremos.

Então, meu amigo.

Peço notícias e trago presságios do que já passou. Não deve adiantar nada. Mas, isto já é o primeiro deles: nem tudo precisa ser útil, nada será útil.

Não se assuste. Será um ano cheio de manhãs perdidas no escuro do quarto, de semanas inteiras a sonhar com o que não vem, de saudades amanhecidas no fim do dia quando o sol baixa e alaranja o rio, o mesmo que passaste por cima pela ponte. Esqueça a utilidade dos dias, largue de mão as possibilidades da noite, abandone a expectativa nas tardes. Não haverá utilidade que comporte a paz que queres entregar a ti mesmo. Acredite, então, nessa paz do ócio, esse mesmo que como operário não fazias ideia do que era. Descobriste tão longe de casa e sozinho.

Outra coisa: não conte com amores, não conte com amigos, não conte com ninguém. É outro prognóstico que trago: conte somente consigo.

Tenha fé apenas em si. Ah, mas, não aprendeste assim? Pois. Nessa idade, não se aprende quase nada. Está tudo amontoado nessa grande cabeça e nessa caixa torácica maltratada. Vais levar tudo para o caixão com poucos novos itens a acrescentar. No entanto, saiba, o mundo não é coletivista. Vais entender, sem retorno. Não há mãos estendidas, não há ouvidos disponíveis, não há olhos recíprocos, nem bocas que te acalentem. Sabe aquele outro poema? Viverás esses terrores, sem a parte da miséria, porque teu pavor primitivo da primeira pobreza nunca te deixará se arrastar pelas sarjetas. Mas, a solidão, as cervejas, os vinhos, as conversas consigo, o flerte com a loucura estarão lá. Nos frios, amarfanhados e impessoais quartos por onde vai passar, com suas camas duras sem visitas, sem a quentura das paixões, sem o cheiro morno das mulheres, aquele que tanto amas.

Até a desculpa principal para estar nesse lugar será posta à prova. Mas, como se diz na tua terra, nem te bate. Será o de menos. Não importa, no final das contas. Chegaste em um nível perigoso, quando, embora nada saiba e desconfie de tudo, tens certeza de que pouca coisa é nova nesse mundo e quase ninguém tem algo vivo, quente e honesto para oferecer. Sempre que encontras, reconhece. Sempre que reconheces, te enamora. Sempre que te enamoras, ama. Sempre que amas, aprende. Então, deixa estar.

Parece uma visão sombria de 12 meses adiante?

Nada, meu amigo.

Não seja tão ansioso nem apavorado com o futuro. A inutilidade, a solidão e o desencanto não são um Adamastor no meio desse mar que te separa muito mais do que inventaste do que realmente tu amas. Até mesmo porque sempre conviveste com eles e nunca reclamaste. Construíste casas, passastes por túneis, presenteaste as mulheres, escreveste livros, constaste mentiras, encontraste verdades, viajaste para os cafundós e te perdestes nas grandes metrópoles, sempre no meio desse caos todo. A vida é isto, como já dissemos.

Vais ver lindas paisagens, ouvir muitos sotaques, provar novos sabores, embriagar-se em demasia, cantar com alguma força, dançar a sós, arrepender-se, seguir adiante, retroceder, desistir, enlouquecer, encontrar sanidade no silêncio, ver o mar, ah, o mar, sentir o cheiro suave do rio e praguejar a ventania do Norte. Vais ver as praias no escuro e as luzes de mercúrio.

Vais olhar no espelho, em definitivo, e ver que não és igual a essa gente que encontraste. Eles não vão também te reconhecer. Virarão às costas, a maioria. As rugas, os dentes manchados de vinho e café e entortado pelos anos, os cabelos negros resistentes com quase nenhum fio branco, a barba pouco espessa, os olhos de índio. Vais te saber à força, inteiro, e gargalhar.

No meio da tez clara da filhas de madame, dos alvos cabelos da rapaziada bem nascida, dos privilegiados de sempre, saberás: aqui não é meu lugar. Ao mesmo tempo, que terás certeza de que teu lugar é onde quiseres e eles, bom, eles que lutem e se meçam pela tua impressionante história de quem não fez nada além do que sobreviver, sem nenhuma noção do que fazer, mas com alguma intuição, o que garantiu mais de quatro décadas a salvo. Eles que engulam tua única, bonita e viçosa qualidade, porque a essa altura não nos cabe mais nenhuma modéstia.

Pois, meu chapa.

Encontre a primeira casa, está logo ali. O quartinho é essa coisa mesmo, não esmoreça. Desfaça a bagagem. A viagem começou e não tem mais volta. Agora é viver. É o que te resta. Segure as próprias mãos nas noites de frio, vá contemplar o sol nos dias de calor. Ande pelas ruas estreitas, suba ladeiras, embarque nos trens, contemple os abismos. Leia o que for preciso, durma quando tiver vontade, coma e beba ao sabor da fome e da sede. Estás só e só viverás. No entanto, não há de ser nada.

Vai ser bom, acredite.

Te encontro daqui a um ano na Ponte Dom Luiz para ver o sol se pôr e saber se, daí, recebeste esta carta.

Um abraço, que é o que te faz falta.

(Vá ouvir Easy)


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Re-introspecto

Estação Ferroviária São Bento, cidade do Porto, dezembro de 2019.

Há 30 minutos, estou em um trem. Há três horas estava na cama. Há 12, o dia amanheceu azul, como poucos azuis que já vi. Há um ano, faltavam poucos dias pr’eu ir embora. Há seis meses, já estava cansado de tudo. Há cinco, mais ou menos, perdi a bússola e quebrei o GPS. Há mais de 40, é sempre assim. Em dois dias acaba este ano e serão 365 novas chances de acerto e erro. Em pouco mais de mês, faço 41. Há tempos a sensação de não pertencer a lugar nenhum me mora. Há sempre um pedra no caminho, no caminho há sempre uma pedra. Houve dias que não foram assim, mas ficaram lá atrás, numa rua de terra batida, numa casa de madeira, num quintal com abieiros, na aurora da minha vida, há tantas luas. Há um segundo desisti do poema e me proseei sobre hoje.

Entrei num trem qualquer, de janelas empoeiradas e assentos rubros, pra escrever e ver a luz do dia azul, como poucos nesse tempo chuvoso daqui. Estou a caminho de uma cidade que já conheço, a cidade primeira, talvez pelo desejo de estar na minha cidade primeira e, ao mesmo tempo, não estar. Desejo um retrospecto, mas tudo anda tão repetitivo e comum. Todos reviram e reviraram o ano nas redes, nas rodas. Tudo tão igual.

Recordo que nunca quis ser igual. Aos 7, percebi que todos os moleques da minha sala de aula queriam ser engraçados e, então, me tornei mais introspectivo e inviável na escola. Me enamorei do mistério ainda cedo. Ao ponto, de crer que não era notado e ter a impressão de que não lembravam do meu rosto, não sabiam quem eu era. A sensação perdurou por quase dez anos até se entranhar. Me esgueirava de mim e me perguntava se eu existia para descobrir que sim, todas as manhãs, manhãs iguais, de banho gelado, uniforme amassado, café preto e minha mãe ligada no rádio ao som de Roberto. Até que o tempo passou, uma mulher me viu e me quis, também em um fundo de quintal, desta vez sem árvores. Quando as luzes da festa se apagaram, ela me levou para os degraus da escada da cozinha e me beijou como se eu fosse o único, o último, o príncipe. E senti, pela primeira vez em meus dedos, o charco que as mulheres expelem quando desejam, lúbricas, ávidas, trêmulas, mórbidas por quererem a morte, a pequena morte. E essas proparoxítonas todas fizeram sentido e retornei daquela primeira longa ausência de mim.

Me achei naquela mulher primeira, cujo cheiro e modos recordo até hoje. O hálito, o líquido e o hábito de ler. Um dia, suada em minhas mãos, pressionada contra a parede no escuro do pátio da casa, me falou de um livro, A idade da razão, e me entregou outro por eu não estar pronto para o primeiro: Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Ela estava certa, porque nunca estive preparado pra nada, em idade alguma. E o título me serviu como um resumo do que viria a ser meu caminho, um começo pra querer chegar em algum lugar que nem sabia qual era. Dele, lembro de diamantes, trapaças e da palavra escarlate, como as poltronas do trem. Dela, de pelos, mucos, dentes, desilusão e da primeira vez que pensei em envelhecer junto com alguém, inocente que eu era.

Há mais de 25 anos desde então. Há tempos envelheci. Ha tempos o fiz sozinho, sem a mulher primeira ou nenhuma outra. Há dias que faz alguma falta, outros, não. Há dias que é apenas dia de entrar no trem e escrever. Há dias que se começa um poema e se escorrega na crônica, no tempo, sempre adiante, e a prosa se impõe, como o trem. O primeiro trem, a primeira cidade e a espera da primeira mulher. Não a da festa, a do quintal, a da escada. Mas, a que ainda virá depois de tanto tempo para reinaugurar algo que esqueci.

Há um retrospecto entalado, sim. Há uma vontade de não ser igual e a palavra solidão, meio triste, a pairar no ar, assim, num país que aboliu o gerúndio. Há necessidade de falar dela, porque, houve um tempo, em que alguém cismou que invocar esse fantasma traria, de imediato, maldição e ele se ampliaria, tal cortina grossa na janela, tal lençol branco no varal. Há ainda essas imagens domésticas e das casas por onde passei neste ano, que, mesmo com gente dentro, pareciam vazias e eu, nos cômodos comuns, em passo de gato, uma visagem do Norte tropical em latitude errada, em um Norte muito longe do meu. Há essa sensação de perdição, de sala vazia, de quartos fechados, de cheiro de mofo, de poucas palavras ou nenhuma palavra dita e algumas guardadas para não sobreviverem fora das gêneses delas. Há só o vagão vazio dessas palavras, que em sonhos se transformam em reuniões ruidosas e solares, azuis, com gente expansiva a contar a vida sem medo, a deixar o sangue fluir nas veias sem freio e despejar sabor nesse clima insosso, nessa dança anódina sozinho no salão.

Há essa cautela real em exagero em um ano de passos curtos e lentos, em dias luminosos e frios para os meus padrões equatoriais; e secos, em qualquer sentido, onde demonstrar emoção passou a ser alvo de censura e enxovalho. Há um remédio amargo para esconder tudo que causa repulsa à essa gente careta e covarde, mas que me mantém na cápsula que elas querem, encolhido e calado, como elas gostam.

Há, por fim, esse trem em direção à cidade primeira, onde desço sem gerúndio, sem rumo, sem quintais nem escadas, para ver as luzes de um Natal que passou e seus palácios cheios de amplos salões sem ninguém dentro e suas ruínas de pedra, passado, pó e paciência, como uma estaca a bater contínua. E caminho nessas velharias e penso nesse ano mofado que se acaba, de consequências de escolhas, de amizades nenhuma, de amores à distâncias, de escutar a própria voz e se falar como quem fala ao único irmão, ao último sobrevivente do planeta: e agora?

Há minha intenção de parar, mas, que nada, paro coisa nenhuma. Há esse retrospecto, mas ignoro, porque a vida é contínua e fluída e o ano novo apenas luzes fugazes que morrem no céu.

Há só essa certeza e muitos trens para tomar ainda.

(Vá ouvir O trem azul)


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Máquina de escrever

Photo by Peter Pryharski on Unsplash

Estava dito e não voltaria atrás: compraria um computador. Não que quisesse, de fato; não que fosse da minha vontade espontânea; uma necessidade, assim, premente, das verdadeiras. Porém, minha artrite já apitava e o manuseio da minha Royal era cada vez mais difícil, sofrido. Empregava uma força enorme para escrever. Em particular, as teclas O, R e S estavam emperradas além do normal. Nem o óleo Singer dava jeito.

Fora que a máquina, única herança do meu bisa paleógrafo viciado em livros, dava impressão de museu à minha mesa de trabalho. Pouca gente acreditava que ainda escrevia naquela obsolência, um uivo do século passado naquele canto. Ela era uma das descrentes. Invadia a casa, jogava a bolsa no sofá, tirava os sapatos e a calça jeans e perdia o tempo apertando as teclas. Só de calcinha. Tchec, tchec, tchec, tchec. Era bonito de ver.

Do alto da inocência, só cria que a Royal jorrava palavras por enxergar os caracteres impressos na folha A4 e já ter visto sair, quentinhos, pequenos poemas de sacanagem feitos para ela ao vivo. Ficava encantada. Nem tanto pelo resultado poético, chinfrim sempre, mas pelos tentáculos saltando da caixa para atacar o branco do papel com aquele barulho assustador que lembrava um trem desgovernado quando eu queria me exibir. Tchec-tchec, Tchec-tchec, Tchec-tchec-tchec, tchec.

Vem o amor suave e em brasa,

em ondas tenras, ternas,

na tua invasão de minha casa,

no teu abrir das tuas pernas.

Eram notas duvidosas que a Royal cuspia sob meu comando e ela adorava. A máquina impunha proximidade lúdica entre nós, no entanto, acirrava nossa distância temporal. Era como se aquela pós-adolescente entrasse na câmara do tempo para espiar, em outra época, um ancião manipular um antiquíssimo cinematógrafo. Ou pior: uma menina olhando um macaco acionar o realejo nas ruas iluminadas com lamparinas, nas quermesses de outrora. Dava no mesmo.

Para espantar os fantasmas da sala/museu, da artrite, da minha caducidade e do vicejo dela, levantei cedinho, como nunca faço. Prefiro sempre acordar tarde. É mais uma tática para driblar os sinais do tempo, afinal, o velho clássico, o convencional, acorda com as galinhas. Ficar procrastinando na cama também evita a fila da padaria, que detesto. Não pela espera em pé em si, mas porque sempre tem alguém que puxa assunto nas primeiras horas do dia, o período que, para mim, emitir ou ouvir qualquer tipo som ou ruído é o mesmo que um tiro na cara.

Contrariado, o sol a cravar as agulhas de luz nos meus olhos, ganhei a rua. A pé mesmo. A cara inchada, moído. Andei uns cinco minutos na umidade da manhã a empapar meus cabelos. Nada de dar oito horas. Peguei um ônibus errado de propósito. Percebi que ia lotar e saltei antes. Aglomerados de desconhecidos me deprimem. De conhecidos também. Contudo os com estranhos são muito piores. Continuei a caminhar. Dei 50 paus a uma mendiga. Ela olhou o dinheiro e não acreditou. Olhei para trás e ela rasgou o cédula, me xingou. Acontece. A vida é tão sórdida que, se algo bom surge, a gente não reconhece de imediato. Quase sempre não é possível remendar a nota. Quase sempre não dá para voltar atrás. Azar o dela. Azar o nosso.

Cheguei ao destino. De fora, parecia uma corporação importante, onde o futuro do mundo é definido ou determinam a morte de líderes que se opõem ao establishment ou fazem experiência com indigentes ou qualquer população vulnerável para descobrir o efeito de novas drogas. Muito vidro, muito reflexo, muito século XXI. Horrível. Entrei. No elevador, uma mulher bonita mexia no celular e ria, ria um riso bonito, daqueles com rugas ao redor dos olhos, complacente com a concupiscência do outro lado da linha, com quem quer que fosse. Ao se perceber observada, endireitou-se e me fustigou com lindos olhos cor de mel. Fechou a cara e se assemelhou àquelas meninas que cobriam os peitos com o caderno quando passavam por mim na escola, nos anos que já não voltam. As ruguinhas se acalmaram. Perdeu toda a graça.

No interior, aquela bugiganga toda. Umas televisões imensas ocupavam paredes inteiras. O sujeito só assiste novela e futebol e compra um televisor daquele tamanho. Pra que? O pior com óculos em 3D. Namorados diante de comédias românticas em 3D; crianças diante de animações em 3D; tias velhas diante de filme de cachorro-herói em 3D; a família toda diante do Tarcísio Meira em 3D. O Tarcísio ainda estava vivo? A última vez que o vi foi como o Capitão Rodrigo em O tempo e o vento. Em outras prateleiras, máquinas fotográficas. Muitas delas. Algumas rosas, outras a 20 mil. Algumas rosas a 20 mil. O que uma máquina fotográfica de 20 mil pode fazer de tão extraordinário para custar 20 mil? Para que fabricar uma máquina fotográfica rosa? As pessoas gastam dinheiro com todo esse aparato. Algumas vendem a alma e se endividam para obter os objetos. Meu Deus, para que? Deixei de lado as inutilidades. Já estava irritado. O consumo me cansa, quem consome me cansa.

As vendedoras zanzavam. Não, não. Elas não zanzavam. Desfilavam. Em terninhos pretos. Compenetradas nas rotas determinadas por um gerente que devia ter escolhido uma a uma por capacidade estética, ou seja, pela gostosura. Um assediador contumaz, de certo. Elas eram inacreditáveis. Se eu não tivesse certeza do lugar que estava, pensaria que estava em uma casa de acompanhantes de luxo ou em um set de filmes pornôs de tão lindas que eram as funcionárias. Fiquei ali abandonado, o ar refrigerado a secar o suor do meu pescoço. Olhei minhas ridículas meias. Logo diante daquelas trabalhadoras de sonho percebi que estava escarrado e cuspido os velhos que abomino: camisa polo, bermuda e tênis com meia. Não, por sorte não era no meio da canela. Limpei os óculos e uma moça se aproximou, sorrindo.

Posso ajudar?

Era tão bonita que me senti intimidado. Loira, olhos verdes, seios médios, alguma sarda, cintura de pilão. Alguém ainda olha para uma mulher e pensa em um pilão? Alguém ainda sabe o que é um pilão? O que importa que ela tinha uma cintura estreita e ancas, ancas, ancas. Nenhuma tintura nos fios dourados, como uma catarinense. Branca e operária. A cara de quem brincou em playgrounds na infância. Alguma coisa deu errada entre a área de lazer do prédio do passado e o emprego de merda atual, pensei.

Claro, claro, quero um computador, respondi. O senhor já sabe qual configuração, retrucou a miss informática. Como? Não entendi. Então, ela começou a disparar: o senhor quer um PC de mesa, um notebook, um tablet? Já escolheu a marca? Quanto de memória RAM o senhor precisa? Qual o espaço do HD? Tem preferência para processador? Prefere MAC, Windows? Tem intimidade com o Linux?

Achei engraçado ela falar intimidade bem na hora em que observava o movimento da língua dela dentro da boca. Intimidade com Linux. No da de intimidade ela abriu um pouco mais a cavidade bucal e no li de Linux a ponta rosa se pronunciou, tímida, entre os dentes brancos. Nenhuma intimidade entre nós. Pura linguagem técnica. Nenhuma intimidade com o Linux, respondi. Quem era Linux? Ela mencionou uma série de especificações sem nenhum interesse, apenas papagaiando, repetindo, como uma criança que acabou de decorar a tabuada de sete. Perguntei o preço de uma configuração básica. Sou aposentado, minha filha, apenas escrevo. Só quero escrever. Não precisa ser nada complicado. Não precisa fazer mágica nem soltar fogos. Só quero bater no teclado e ver o texto na tela, expliquei. Vou precisar de uma impressora também. Eu gosto de papel, gosto de árvores derrubadas para fazer as remas, para registrar a evolução da humanidade, as carências da civilização. Derrubem as árvores para imprimir histórias. As grandes, as pequenas, as medíocres, as que mudaram tudo. As árvores são para isso e não para serem abraçadas ou defendias por gente que não toma banho para não estragar a água dos rios. Mas, tudo isso eu só pensei. Me contive.

Apesar da simplicidade da explicação, a modelo-manequim-atriz-vendedora me informou que o conceito de básico era muito amplo. Quase uma filósofa. Era necessário, de verdade, ter uma referência, uma noção do que eu queria para não comprar errado, adquirir o produto dentro das minhas expectativas, das minhas necessidades específicas. No ci de específicas a língua se mostrou novamente. Tive um flash pornográfico envolvendo a cor rosa do ceceio discreto dela e da máquina fotográfica de 20 mil. Falou tudo sorrindo, um sorrisinho falso de quem não tem mais nenhuma paciência nem tempo a perder.

Fui vencido. Não entendia nada de configurações. Sai de casa com uma pequena fortuna no bolso e nenhuma informação do que queria comprar. Sou do tempo em que para comprar alguma coisa bastava entrar, pedir e pagar. Os tempos eram outros. Comuniquei à atendente sobre minha confusão e prometi voltar outro dia. Ela agradeceu com um volte sempre que mal escondia sua impressão sobre mim: um velho sem dinheiro e ignorante que preferia lojas de informática a filas de bancos para perturbar as pessoas.

Peguei um táxi e em pouco tempo estava em casa, com a Royal. O meu museu particular cuja peça mais estranha era eu mesmo. Fui até o espelho e olhei minhas rugas. Minhas sobrancelhas tinham mais pelo do que o normal e as pálpebras começavam a queda livre puxadas para baixo pelo peso dos anos. Despencavam vertiginosamente. Os cabelos resistiam, na cor preta inclusive. Alguma vantagem minha ascendência de índio bravo deveria ter e estavam ali naquela cabeleira. Bateram na porta. Fui atender e ela passou por mim, sem dizer nada. Jogou a bolsa no sofá. Resmungou alguma coisa como estou morta de fome. Tirou a calça e foi batucar a máquina. Tchec-tchec-tchec-tchec.

Pus os óculos, pedi licença e manuseei o realejo que cabia a um macaco da minha idade, com ela encostada ao meu lado, com as coxas resvalando meu braço direito, o cheiro do sexo recém ababado pelo jeans e agora, livre. Olhei o papel por cima do pincenê e disparei, como um comboio sem rumo noite adentro, no pouco trilho que ainda me restava. Tchec-tchec-tchec, tchec-tchec, Tchec-tchec-tchec…

Abunda o perfume à fria cama

ao ardume de teu ventre.

Ao rever-te o peito inflama

Em chama vaporosa,

No átimo do tempo nosso.

Sem rima, que lindo, ela elogiou e me beijou, me lambuzou e continuou sôfrega, pernas escanchadas em meu colo feito uma amazona.

Quem precisa de computador, afinal, não é?

(Vá ouvir Trovoa)

(Texto com pequenas adaptações do conto originalmente publicado no meu livro Bêbado Gonzo e outras histórias, de 2013).

Inimigo

Aqui não é hora de conversar. Era o que ela dizia, pouco antes de tirar a roupa. Chegava quase sempre depois do almoço. Num horário de sesta. Pra fazer de tudo. Menos dormir.

Ria nua, de dentro das sardas, por trás das não sei quantas tatuagens. Parava o carro no portão, óculos escuros, atravessava a casa, já quase sem cheiro da refeição recente, e subia as escadas em um fôlego só, com a musculatura, os olhos e fome de onça que tinha. Não demorava a miar dentro do forno que era o quarto a nos cozinhar até umas duas da tarde.

As coisas começaram quando me mostrou um piercing. Na buceta. Assim, naturalmente. Obviamente, eu quis ver. Na verdade, insisti, curioso que sou. Entre uma provocação e outra, ela enviou a foto. A Internet 2.0. ainda era uma ilusão difusa na cabeça dos cientistas da computação. Usávamos o Messenger velho de guerra, eu na frente de um velho monitor de carcaça amarelada. Mandou a imagem de um ângulo tão fechado, que o adereço poderia ser qualquer coisa ou estar em qualquer lugar. Gargalhou da minha frustração e da minha ingenuidade. Acha que é fácil assim? Hahahaha.

Antes, bem antes, havia se queixado do quase marido, nas confidências que me fez. Era um homem ocupado, conhecido entre os seus, profissional respeitado, inventivo, cheio de iniciativa e vaidade. Antes de ela contar os bastidores daquele meio matrimônio, eu já nutria certo ódio e preguiça do sujeito, como nutro ódio e preguiça de todo esposo. O que devia ser recíproco porque uma nuvem cinzenta emanou nas vezes que nos esbarrávamos na nossa pequena vila de pescadores de sonhos. Dois cavalheiros, trocávamos farpas amistosas na delirante aldeia global, não raro por política, com alguma ironia, humor e até compaixão um pelo outro. Nós, pobres diabos.

As confidências entre mim e ela ficaram frequentes e cada vez mais íntimas, a prova de que entre duas pessoas, a primeira guarda que baixa é a da língua. A nossa estava baixa havia algum tempo. Mas, fingia não perceber, porque, por mais óbvio que fosse, as circunstâncias não eram favoráveis por motivos mais evidentes ainda. Fora a minha baixa autoestima de sempre, de um vira-latas diante de uma fera.

Mas, o diabo atenta e a coragem aparece quando menos se espera. E, ao perceber a chance, mantive a velha tática dos velhos da grande arte. Soltava jabes e me movimentava ao redor, sem muito jeito, mas com vontade. Voe como uma borboleta e ferroe como uma abelha. Ela escancarava os dentes e baixava mais ainda as luvas. Contava a vida, mostrava velhas fotos da época de modelo, ligava o vídeo enquanto tomava banho, fazia uma piada inteligente, esmagava minha cara séria, leve, leve. Eu esquecia a luta e precisava retomar o ritmo sempre. O último assalto seria um cruzado de direita no queixo em quem estivesse mais cansado e zonzo.

O tão esperado nocaute aconteceu num dia em que estava sozinha. O boy foi convocado a um compromisso, daqueles inadiáveis. À essa altura, nossas conversas não eram mais tão discretas e ela apareceu já quase meia noite. Era uma voltinha só pra comer alguma coisa, quebrar o gelo da distância. Paramos na rua mais famosa da cidade e, depois de alguma tensão, sem criatividade alguma fomos parar num drive-in, tipo de lugar que nunca havia entrado por jamais ter um carro.

Ouvimos os gemidos que vinham das outras garagens com alguma curiosidade e nervosismo. Foder, como comer, nos lembra que somos como cachorros, macacos, gatos e golfinhos. Na imensa fileira de cabines, as mulheres uivavam como lobas e os homens grunhiam como porcos.

Nos beijamos no penumbra e, em algum momento, ela falou que não gostava dos próprios seios. Ou foi antes de entrar? Pedi pra vê-los e ela os exibiu. Duas massas perfeitas de mamilos grandes e rosados. Mamei como um órfão, como se tivesse nascido para aquilo. No rádio, uma canção e ela ficou à vontade na noite úmida, naquela impessoalidade toda daquele lugar horroroso.

Vi as tatuagens, o ventre com a joia no clitóris, os músculos do corpo, a pele alva repleta de sinais e os olhos felinos resplandecentes no escuro. Não era a posição preferida dela, mas ficou de quatro e trepamos até bem para uma primeira vez, comigo ainda sem acreditar direito no inusitado daquele coito clandestino em um dia de previsão zero para acontecer algo de extraordinário.

Depois do drive-in, vieram os encontros do intervalo, em casa, onde ela era rainha no meu piso xadrez. Uma deusa que entrava e saia da minha rotina, às vezes, com o sorriso bobo e o olhar baixo de um cigarrinho de cannabis ou haxixe. Uma vênus na floresta tropical pós adolescente vigorosa e moderna diante do meu anacronismo forçado para ser velho antes do tempo.

Quis roubá-la pra mim muitas vezes e com ela aprendi a dizer eu te amo, quando, na verdade, estava apenas entorpecido pela demência química da paixão, sem nenhuma culpa ou vergonha na cara. Era uma festa de suor, cuspe, sangue, urina, fezes, sêmen, muco e dopamina sempre. Um vício escorregadio, ácido e inconsequente no nosso esconderijo doméstico, onde eu vasculhava-lhe a boca, o sexo, o cu, as axilas, o vão dos dedos dos pés e entregava minha alma depois de morrer nas tardes em que ela aparecia.

Lá fora o inimigo deveria estar enfurnado na sala do seu alto cargo a dar ordens, receber elogios e se sentir importante, a criar estratégias e acumular prestígio e dinheiro. Ávido, nervoso, elétrico, como pouco fora da idade para ser um yuppie amazônico, mas cheio de viço e marra. Enquanto a gente só se derretia, entregues à irresponsabilidade, tudo de graça. Quantos telefonemas de hoje não vou poder ir eu fiz pro trabalho para não perder o fio daquele amor inventado?

Porém, como tudo nessa vida, as coisas esfriaram.

Um dia ela ligou. Chorava, sentida. Mais uma briga, mais uma ferida no coração selvagem. Não conseguia se desvencilhar da armadilha que era aquela relação vencida, mofada. Eu não conseguia fazer nada e talvez nem quisesse por falta de coragem ou por saber que não adiantaria nada. Ou ainda, que nosso lugar era no segredo, enfurnados, longe do mundo. Creio que as coisas se quebraram um pouco ali, quando entendi que era um veneno que eu não tinha o antídoto ou por ter percebido que, o que era um banquete pra mim, pra ela era só um aperitivo sem importância.

Resignado, a voz na minha cabeça me dizia, deixe ir, não fique, não é seu. Deixei, não fiquei, não era minha, nem de ninguém. Nos largamos aos poucos, sem dramas, sustos ou traumas.

Meses depois, me procurou assustada ao saber por um amigo em comum que eu estava prostrado, à beira da morte. Definhava e não duraria, diziam por aí. Mais lágrimas, de novo. E, contraditoriamente, recordei dos risos no calor absurdo em cima daquele colchão velho e manchado, outrora antro de gozo e sussurro, agora meu leito derradeiro.

Desmenti os boatos, sem muita certeza. Meu diagnóstico era real até então, mas, driblava a realidade ao emular uma valentia, que era apenas a certeza que morreria sem tratamento, sem ajuda, sem dignidade, pobre e sem nada pra deixar. Que nada, não vai ser dessa vez, eu mentia. Ela acalmou e o assunto, antes de mim, morreu.

Lembro-me bem da conversa. Foi o dia que percebi que o meu fim era assunto de outras pessoas. Até o momento que era um semi segredo, tinha esperança de ser somente um delírio autodestrutivo ou pesadelo de um sono à tarde. Não era.

Fechei os olhos por medo. Não de morrer, mas de não ter vivido. Pelos meus cálculos, faltava menos de um ano, se muito. Restava esperar.

O telefone ainda mas mãos, ouvi nítido de novo a voz de pantera macia e pálida a largar as roupas pelo chão na minha lembrança:

aqui não é hora de conversar.

E calei mais certo de que morreria.

(Vá ouvir Flor da idade)


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Lista de compras

Photo by Rubén Bagüés on Unsplash

se não abre o olho,
se não lança mão,
se não mete a cara,
é tudo o que te espera
o anestésico,
o analgésico,
o dietético,
o esotérico,
o psicotrópico,
o escalafobético,
o circo, a farsa, a cerca.

Perigo,
perigo,
perigo.

é tudo artifício,
hospício, vício,
precipício,
no frontispício da prisão,
penitência,
violência,
o avesso da vivência,
morte lenta e doída,
ou pior:
roda viva.

a obrigação do sucesso
o tatibitate dos netos
a poupança mirrada
a aposentadoria roubada
a previdência privada
o dinheiro nenhum
o xvideo, o pornhub, o YouTube
a vida alheia, o viagra,
o canto, a sereia
o sonho da sesta
a próxima festa
a ressaca do sábado
a derrota do domingo
a novela das nove
a bola da quarta
o baralho na praça
o varrer da calçada
o passeio no shopping
o padre na missa
o pastor no púlpito
o tambor no terreiro
o apego à morte
a crença na sorte
o susto com a vida
o despertador,
 o despertar suposto
o bom e o mau gosto
a dor, o ardor, o amor que já foi
o bolsonaro e o pleonasmo
a esquerda de fachada
a direita histérica
o dedo no cu,
a gritaria
o odioso tanto faz
o jogo de poker
o poker face
a droga de farmácia
o drops no cinema
a dobra do tempo
a falácia
a beleza maquiada
o orgulho das rugas
a vergonha delas
o peito novo, a lipo
a plástica, o peso, o implante,
o desplante, a dentadura
os 20 anos a menos
a dívida a mais
a carinha de venci
o estou acima de tudo isso
o não sou nada
(TENHO APENAS TODOS OS SONHOS DO MUNDO)
a pena de si mesmo
a netflix, o spotfy, o podcast
a causa própria
o apê quitado
as fugas na madruga
a conversa mole
os signos, o tarô, as runas
as praias, o mar, as dunas
a draft a 6 paus
o chopp artesanal
o vinho do bom
o scotch legítimo
a barbearia pra macho
o centro de estética
a falta de vontade
o excesso dela
o couch, o personal, o analista
a puta, o boy, o sócio cotista,

o samba cínico, o fado niilista

a carreira na multinacional
a carreira no banheiro
o tesão na jovenzinha
o ódio ao garotão
o tédio pelo marido
o fogo pelo amante
o assédio à secretária
o esporro matinal
a polução noturna
o motel no almoço
o hotel em Dubai
o desgosto do pai
a condescendência da mãe
o texto sem vírgula
a lista de compra
o vazio da tarde
a agonia da noite
a preguiça de toda manhã
os sonhos irrealizáveis
a repartição
a repetição, a repetição
a repetição
de novo e de novo
sem fim, finalmente, enfim

Perigo,
perigo, 
perigo.

corra, corra,
se mate, se afaste,
não acate, não se baste
morra antes

ou desvie.
veja, vire,
vigie, vingue,
vague, pire
crie

outra estrada
outra via,
outra vida
outro nada,
no braço, na raça
à marretada.

(Vá ouvir O bilhete)

Passagem

Photo by Richard James on Unsplash

Não fixo, não guardo, não trago dinheiro, tenho só a roupa do corpo e um punhado de sonhos pequenos, enterrados no canto do olho, que já enxerga a próxima viagem.

Não tomo assento, não compro móveis, não leio jornais, não mordo a isca, não me demoro na cama, não faço sala, mas falo em saudade quando já me encontro distante a tomar atalho fora da linha das mãos.

Meu coração tirano é água e pedra, torrente e ventania, nau e mar, folhas secas soltas na bruma de outono, um gato negro no telhado, um uivo de vira-lata no escuro, um estalo de quebra de galho ressequido, um relâmpago na praia, um caminho estreito até o mar à noite.

Não se despeça, não chore, não meça, não faça alarde, não core, não se pendure, não se demore, não se arvore, que escorro pra qualquer lugar, em qualquer colo, em qualquer vão, qualquer catre, esteira ou chão batido, batidas do meu peito vão. Deixo o banco vazio e os dobrões no balcão do bar e porta de folhas duplas a balançar.

Se quiser me agradar, me faça um poema, esqueça em meu bolso, me beije, não diga adeus, me aqueça, me esqueça, deixe pra trás escondido, olvidado, num buraco de tijolo, no pé de uma árvore, na toca de um rato, que encontro as palavras na próxima paragem.

Não me faça promessas, não assine papéis, não me trate como filho, não me queira como pai, não me veja como irmão, nem me jure eternidade ou me acene com alguma migalha do que eles chamam felicidade. Não me convide para igrejas, cartórios, salões, cemitérios, reuniões. Não quero, não vou, não aceito, recuso, fujo na hora.

Eu sou o estranho do outro lado da rua, debaixo de chuva, numa madrugada de lua nova. Eu chovo só, corro só, morro só, me abrigo ensopado em mim mesmo e renasço enxuto de manhã para continuar andarilho, rastilho de pólvora que sou.

Não me segure, que não fico. Não me solte que vou de qualquer jeito. Meto o peito no mundo, exponho a cara ao sol e à poeira, enfio os pés pelas mãos, salto no escuro, mas vou. Vou, sim. Tenho vício em ir, tenho prazer em não ficar, tenho ânsia em não permanecer, tenho gosto pelo cheiro de novas paisagens e cuíra por um novo lugar — e, se não sabe o que é cuíra, nem me dou trabalho de dizer.

Não me amarre que nasci pra desatar nós de marinheiro, cortar cordas com os dentes, desfazer em lavas as correntes, partir e repartir e parir um novo plano a cada sinal de inércia.

Mas, não se ressinta, não me queira mal. Não me tenha como doido ou diga que me falta coração.

Quando me vir na estrada, me acene, me chame, me queira, me acolha, me ache, me ofereça um abraço, um copo, o corpo, os ouvidos, a sombra, o fogo do ventre. Não tenho nada, só alguma pressa, mas sei contar histórias ou ficar calado sem me incomodar com o silêncio que vem do outro lado.

É possível, assim, que a lembrança me force a voltar, que minhas pernas cansadas me obriguem a mudar o ritmo e o rumo. Mas, não conte com meu retorno. Não garanto nada. Meu ir é adiante e livre, minha única constância.

Se quiser ser algo, seja o pedaço da viagem que guardarei até o fim, a lembrança que levarei na carteira de couro envelhecida, o retrato amarelado na parede de uma casa que jamais será minha, a visão no fundo do meu olhar perdido por trás do alo azul da minha catarata.

Seja o oásis, a tenda, o idílio, a miragem, mesmo se me souber deserto, apesar de me reconhecer nômade, essa impermanência viva, aqueles viajantes que não esquentam o leito, não ficam para o café, nem se despedem no portão.

Aprendi desse modo, saio sem barulho para que o anfitrião não acorde, não perca o sono dos justos, nem verta lágrima nem lance suspiros.

É duro, me perdoe, mas a vida é essa e não outra.

Não tenho muitas desculpas, nem rodeios ou remédios pra esse mal sem cura.

No fim, é isto mesmo.

Estou, está, estamos, sempre de passagem.

(Vá ouvir os Argonautas)


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