De terrenos baldios e copas de abieiros

Praia de Inhaúma – Acervo Museu da Maré.

Me forcei a uma lembrança bonita da infância. Apertei aqui e ali, revirei pedras, visitei ruínas, fui a terrenos baldios, corri em matagais, vasculhei em vão de sofás, em prateleiras e embaixo de colchões mofados. Não achei quase nada.

O mais longe que cheguei foi ao dia em que um animal voador, provavelmente um morcego, invadiu a casa e ouvi gritos de mulheres. As asas grandes e negras, o ziguezague bêbado no ar. Eu estava deitado de barriga pra cima dentro de uma rede. Enquanto enxotavam o bicho, olhava as ripas e o avesso das telhas do casebre sem forro, alheio, expectante, indefeso.

Mais fundo ainda, encontrei a sensação incômoda de perceber um erro, talvez o primeiro que dei a devida atenção. No batente da porta, veio quente e pesado no fundo dos shorts. Não recordo muito bem, mas fui repreendido e pela primeira vez senti o que era a vergonha e fui comunicado que aquele odor era reprovável.

Continuei a busca. Me veio outro cheiro, o do igapó por baixo das pontes de madeira, onde aprendi a andar me pegando pelas paredes daquela primeira vila de casinhas de tábuas, já extinta há tantos anos. O coração gelado nos primeiros passos e a queda dentro da água podre igualmente fria. Me lembro de, pelo menos uma desses mergulhos, e o aroma de capim e de lixo ainda me atropela, como se agora estivesse prestes a me afogar no esgoto a céu aberto da aurora da minha vida.

Busquei essas lembranças. Um Natal nos dezembros de chuva, um brinquedo esperado, um passeio de carro, uma briga vencida ao menos, uma pipa no ar, um guara suco com pastel na mercearia do seu Abraão, um dia na praia, uma mulher bonita que me parou do nada na volta da escola, me beijou a face e me disse que eu era um menino lindo. 

Percebi que as tive todas, mas as mais nítidas, as que ficaram como resíduos, remodeladas ao longo dos anos, as desenterradas de todo, expostas como velhas ossadas, são as muito feias, muito sujas, muito escuras, por vezes trêmulas, demais envergonhadas, frequentemente doridas, de uma criança que tinha muito interesse e certo pavor sobre o que não conhecia e acontecia ao redor.

Persegui minhas reminiscências mais belas e encontrei um moleque de estômago inchado, unhas roídas, pés cheios de frieiras entre os dedos e olhos brilhantes e tristes, em cima de um abieiro sozinho. Descalço lá em cima, pensava acerca de algo que não me lembro, embora me force, force muito para lembrar, e não alcance. Ele olhava as telhas quebradas de amianto da retrete no quintal por onde chegou às árvores e, de vez em quando, suspendia a cabeça para ver a luz atravessada nas folhas e galhos. E sentia o que agora sinto, quase 40 anos depois.

Vá ouvir Mamma Maria.

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