Fantasma mesmo antes de morrer

Automat, Edward Hopper (1927)

O homem percebeu de imediato o abatimento dele e se aproximou com o panfleto. As vendas estavam resumidas em uma diagramação muito parecida com um folheto de mercadinho de esquina ou propaganda de bloco de carnaval. Avaliou no automático. Só sabia que não tinha dinheiro, mas arrumaria. O olho bateu no mais barato. A mãe estava na pedra da morgue municipal, ainda com a bata da internação e algodões no nariz. O corpo maltratado, não pela morte, mas pela vida, denunciava que os últimos anos não foram muito bons.

Só que nem sempre foi assim.

Uma semana antes, Marília entrou numa venda para comprar cigarro junto com a prima e amiga de infância que saiu de Belém para vê-la. A visitante parece que previa. O vendeiro estendeu a carteira de Derby e disse sem constrangimento:

_ o que se faz de uma miss.

Ela riu.

Não se sabe se concordou ou apenas se protegeu da ofensa, porque, no fundo, era uma agressão gratuita. O velho remeteu ao carnal de 1979, quando Marília de biquíni enfeitado de lantejoulas e miçangas e um penacho na cabeça enlouqueceu a cidade como Rainha da Beleza e da Alegria. Tinha olhos pequenos e negros, brilhosos como faísca, e duas fileiras de dentes perfeitos.

O corpo sinuoso e lindos úberes de puro músculo com mamilos salientes e apontados para o céu. Um quadril redondo centralizado por um vente de pelos negros e vastos, de lábios grandes, suculentos. Não tinha tanta bunda, mas tudo harmonizada maravilhosamente bem. Pelos, gestos, cabelos e a ascendências de índios Camutás a fizeram uma raridade e, consequentemente, uma miss, a mais bonita desde que os franceses puseram o pés naquele inferno.

Nessa época da coroação, conheceu Murilo, ou, Dr. Murilo, um homem que usava anéis de ouro nas duas mãos e tinha uma barba grossa e fechada e belos olhos verdes, como o Luís Carlos Miele.

A prima odiou o comentário do comerciante e, ainda assim, não conseguiu não comparar. Olhou a velha que estava ao seu lado e, finalmente, também se chocou com os estragos.

Marília agora tinha os olhos cobertos por pálpebras caídas e tristes. O lume se perdeu de tanto olhar o rio do cais no escuro da noite. A pele manchada com placas escuras feitas pelo sol, além das rugas do cansaço esculpidas pela vida. As unhas dos pés e das mãos mal cuidadas, algumas encravadas, e uma barriga grande de verminose e outras doenças. Dos tempos de deusa, manteve o comprimento do cabelo e só, agora cheio de fios brancos e amarelados, morada de piolhos.

Andava com as roupas velhas que lhe doavam e dormia sozinha na casa abandonada, a primeira de sua família, uma residência de madeira, imensa e bem feita como um barco, viva como como um riso de crianças. Lá, ela brincou no pátio com a multidão de primos que teve e com os porcos, jabutis, galinhas, patos, gansos, papagaios e cachorros que zanzavam em um imenso quintal. Agora o lugar era uma ruína que os pais mantiveram para abrigá-la como um bicho doente. Ninguém entendeu muito bem, o que houve com a criança feliz e a moça linda que ela foi na adolescência.

O fato é que Marília havia se transformado em um fantasma mesmo antes de morrer.

Comia mal, fumava muito, bebia exageradamente, tinha amores clandestinos e imundos no meio do mato com homens absolutamente execráveis. Ela desistiu de estudar e manter a pose de beldade, nunca conseguiu um emprego sequer. Vivia de restos que a mãe lhe dava, inclusive os de afeto. Ninguém era mais maltratado e desprezado que ela.

Com os olhos vidrados de quem perdeu a conexão com o mundo, ouvia os gritos e as ordens ásperas e respondia pouco com o sotaque cantado que nunca perdera. Os irmãos bem sucedidos a ignoravam e criavam um constrangimento constante só por existirem: como ela não conseguiu nada na vida, se eles, criados do mesmo jeito, tinham conquistado o mundo?

Muitos tentaram entender ao longo dos anos o mistério arruinado que Marília ergueu em torno de si. Doutor Murilo, aquele crápula, levou boa parte da culpa. Enquanto ela lhe foi um troféu, viveu e andou com ele em todos os lugares mais finos da cidade e da capital. Quando musa, ela deixou seu lugar e foram viveram em um prédio elegante em frente à Batista Campos, onde ela levava o filho que teve com o homem para brincar e tomar sorvete aos domingos.

A vida boa não durou muito, porque Marília não podia tormar as pílulas e engravidava seguidamente. Na mesma proporção, o doutor a convencia a realizar abortos, e foram tantos que ela perdeu a conta. Quando começou mudar o corpo, foi desprezada. Primeiro esteve muito magra, quase esquelética, depois inchou e ficou com quase cem quilos.

Dr. Murilo a criticava, remetia aos tempos Guerreira Tupinambá do carnaval. Não demorou, ele fez das suas com outras mulheres. Se ela reclamava, apanhava de cinto, como se ele foi um pai carrasco e ela a filha travessa. Até que Marília cansou e voltou para casa da mãe, na cidadezinha onde se sentia mais à vontade e pertencente, onde teve outros filhos e achou outros doutores que também contribuíram para sua desgraça, talvez iniciada justamente com uma promessa de felicidade.

Ainda jovem, ela recebeu um convite irrecusável para morar em Paris com um tio, advogado famoso na época. Correu feliz para contar à mãe e recebeu um não como resposta. Não iria, é muito nova, é muito arriscado, o que tu vai fazer pra lá, teu filho vai ficar com quem, comigo é que não é, tu nem francês tu fala. Tentou argumentar, levou uma pisa. Foi dormir chorando de couro quente.

O tio tentou um arranjo para leva-la e, apesar de todo latinório de causídico juramentado, não funcionou. Dona Raimunda não permitiria e achava uma afronta sair assim que nem desvairada pelo mundo. Ela tem tudo aqui, não tenho filha puta, não. Depois da derradeira negativa, Marília dormiu por uma semana e acordou apática. E, a partir desse dia, as coisas se encaminharam até aquela pedra fria.

No tempo em que separou do Dr. Murilo e voltou, todo mundo entendeu seu estilo de vida franciscano como uma escolha. Os cabelos, antes arrumados, agora eram selvagens. As roupas mais caras passaram a ser muito simples, de início, e depois os andrajos que acompanharam até o fim. Os dentes apodreceram e vários foram perdidos, o que a fazia sorrir de boca fechada o tempo todo. O corpo perdeu toda a harmonia antes elogiada e o brilho vitráceo de jabuticaba no olhar se apagou.

Tinha um negócio de triste e doido nos olhos de Marília e, por vezes, os que a conheceram na juventude comentavam exatamente assim: Marília, ficou doida e triste.

Nunca mais desfiles, nunca mais carrões, nunca mais Dr. Murilo, nunca mais os bulevares, a torre, os cafés, as boinas, as fotos em preto e branco que colecionava da Cidade-Luz com Montmartre, Moulin Rouge, Sena e Louvre. Nada mais. Negligenciou o que pode o filho mais velho, criado na bicuda pela avó. Teve outro já quase velha, sem saber quem era o pai. Era uma alucinada ou uma mulher muito sábia, que não ligava para posses ou aparências, pensavam.

Se eu fosse linda como ela, teria tudo e todos aos meus pés, comentavam as mulheres da cidade quando a viam passar, as mesmas que envelheceram cheias de filho, sentadas no batente das portas de suas casas.

Marília deixou escapar uma única vez à prima, que gostaria de arrumar os dentes e se vestir melhor. Mas dinheiro não havia. Morar em uma casa arruinada, de paredes despencadas e rombos no piso, com os animais diurnos e noturnos a lhe atormentar também não era o que ela queria. Quantas noites chorou de medo com os ruídos das aves adormecidas e das almas que zanzavam entre o quintal e a casa principal onde a mãe, o pai e os filhos dormiam seguros? Havia perdido a conta.

Ao contrário do que imaginavam, nunca teve saudade nem de Dr. Murilo nem da vida que ele proporcionava nos tempos de ouro, porque a crueldade daquele homem em lhe obrigar a sufocar os filhos no ventre e trai-la tantas vezes sem piedade apagou qualquer vestígio de amor que Marília poderia guardar.

Quando as dores começaram a lhe apertar as costas, já comia quase nada. Era uma refeição, quando havia, e um maço de cigarro que o pai não lhe deixava faltar, pois amoroso e também fumante, só que complacente com a amargura da esposa, dona Raimunda.

Mesmo encardida e já novamente muito magra, pergunta-se onde estaria o tio advogado e respondia a si mesma. O tempo havia engolido aquela possibilidade, os primos, filhos dele, estavam criados e agora viviam no Brasil e o tio era um moribundo prostrado em uma cadeira de rodas, que se urinava sem nenhum controle, tinha as mãos trêmulas e já não conseguia falar.

Tinha saudade apenas dos recortes das imagens francesas que guardava e daquele futuro em um lugar imenso e desconhecido com uma luz diferentes e ruas muito largas, sem novena, nem procissão, sem disse-me-disse e picuinhas, longe de tudo e de todos. Não havia mais tempo, ela respondia para si. E não havia, de verdade.

Quem a levou às pressas para o Pronto Socorro foi o filho mais velho, que era a cara do Dr. Murilo. Contorcia-se de uma dor que não sabia exatamente de onde vinha. Foi socorrida horas depois de padecer na fila. Intubada, era grave, muito grave, não sabemos o que é, vai precisar de exames, mas é grave, muito grave.

Agora estava deitada, morta definitivamente, vestida com a bata hospitalar, a única roupa limpa e sem remendos que usou nos últimos trinta anos. Os cabelos da fronte totalmente brancos, os olhos agora sem luz alguma, como já estavam havia uma cara.

O filho fechou o negócio com o vendedor da funerária pequenina na frente do hospital. Foi o mais barato e de pior qualidade. Não porque assim o quisesse. Nunca fora desnaturado. Era o que podia pagar — e nem podia, tanto que parcelou de infinitas vezes o funeral modesto, de flores de papel crepom e pousas velas acesas.

Da capital, Dr. Murilo fez um cheque polpudo e mandou entregar em mãos ao rapaz, que ele quase não via e mal falava, para que Marília fosse posta no melhor caixão e fosse construído o melhor túmulo que a cidade jamais havia testemunhado. Mas a verba chegou tarde. Ela já estava enterrada havia mais de mês quando o homem teve a notícia que havia falecido.

O filho aproveitou e comprou um carro. Ia atravessar o rio para ver o pai na capital.


Vá ouvir Besame.


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