
Não sou tão velho assim para morrer de saudade dos velhos carnavais e minha relação com esse símbolo nacional já foi pior. Já detestei, confesso envergonhado, num fingimento de velho ridículo. Hoje sinto saudade de toda música ruim, do fedor de urina nas ruas, de toda pulsão e risco de morte daquela alegria caricata e da possibilidade absurda de lamber e ser lambido por alguém em via pública no meio da multidão. Absurdos impensáveis numa crise sanitária. Quem viveu sabe.
Mas, deixando as lembranças mais recentes em seus devidos lugares, gosto muito, mesmo e tanto, daquele conto do Veríssimo, aquele do encontro dos foliões mirins ano a ano no bailinho. Aí, sim, dá uma nostalgia bonita e até arranca umas memórias próprias, como a da estranha que segurou minha mão em 1986.
Depois que as gêmeas nasceram, minha mãe foi arrebatada por um rebuscamento artístico nunca dantes visto na história desse País. Com um filho menino, ela não tinha muita chance de enfeitar o moleque até não poder mais. Até poderia, mas não era de bom tom. E paro por aqui essa discussão de rosa ou azul, que não cabe tanto debate, não nesta reminiscência suburbana de uma mãe desesperada na tentativa de entreter os filhos de alguma forma no meio do caos e da insalubridade do feriado mais esperado do Brasil. O que de fato importa é que minha mãe estava maravilhada. Com as meninas, a alma de estilista da minha genitora se libertou das amarras da pobre estética cis gênera cheia de amarras da performance da masculinidade compulsória. Com esmero, driblando um orçamento curtíssimo, ela deixava as filhas nos trinques, umas fofuras. No carnaval, então, nem se fala: viravam princesinhas ou odaliscazinhas ou bailarinazinhas ou ciganazinhas idênticas. Elas eram uma graça.
Creio que os gastos não chegavam para mim, porque não me vejo no caldo da memória como um garotinho fantasiado. Recordo somente de umas camisas de viscose estampadas, feitas exclusivamente para o meu guarda-roupa pela costureira da rua de casa, a dona Geni, uma preta cearense que era um ás na máquina Singer, devota do Padim Ciço e adepta de uma boa pinga. Era só meu vestuário ordinário do cotidiano, nada feito especificamente, que o dinheiro nem dava pra isto. Na minha imaginação, eram imitações das vestimentas do Magno, aquele do bigode, aquele do seriado no Havaí estrelado por Tom Selleck. Você não se lembra? Ah, também nem importa.
Desta forma, pobremente arrumadinhos, íamos os quatro para a Avenida Pedro Miranda botar o bloco na rua: elas devidamente adornadas para folia, eu acreditando ser o dono da Ilha da Fantasia, com meu traje escalafobético, fosse no carnaval, fosse em domingo comum de missa das crianças, sempre com o coração tropical e as estampas mais ainda.
Naquele 1986, fomos assistir a folia na nossa Pedreira querida como se estivéssemos indo ao Rio de Janeiro ou a Salvador. Ainda havia alguma inocência e nas trincheiras da alegria só o que explodia era o amor, como na música de Gal. Tinha uma briga aqui e acolá, nada muito grave que a turma do deixa disso não resolvesse. A avenida ficava tomada das comunidades das transversais, alamedas e passagens ali próximas. Gente de sangue quente e riso farto que sustentava o lema do bairro, de samba e amor, no gogó e no gingado. Uma explosão brasileira no tucupi sob o bafo morno da cidade que só era suspenso quando chovia. Neste dia, não choveu. Ou choveu a chuva que nem consideramos de tão insignificante para nossos padrões pluviométricos.
Nos relâmpagos das minhas lembranças, antes do cortejo dos blocos, insisti feito um vendedor de enciclopédia para ver “O homem mais forte do mundo”, com Lou Ferrigno, aquele ator do Hulk. Em exibição no famigerado Cine China (antes Cinema Paraíso, hoje uma igreja da Universal). E minha mãe atendeu, como num milagre. Era no caminho e entramos todos naquele prédio enorme, passando a Mauriti.
Achei que o que me impressionaria seria o brutamontes carregando carros, retorcendo barras de ferro e metendo a porrada em todo mundo. Mas que nada. A película era confusa pra minha idade e em inglês com legendas que a minha leitura jamais acompanharia na época. Nem me liguei pro que estava no telão. Já ao redor…
O que me arregalou os olhos foi o ambiente esfumaçado, cheio de lanternas vermelhas de papel e as pessoas em atitudes suspeitas no escurinho. Homens com suas cervejas nas mesas acompanhados de mulheres, gente escorada nas paredes, alguns aos beijos e outros às gargalhadas, garçonetes pra lá e pra cá, muito barulho e ninguém nem aí pro fortão em cena. Os donos do Cine China eram a vanguarda e implantaram um modelo de sala de exibição misturada com bar e boate que, aparentemente, não pegou e foi extinto nos anos seguintes, quando os pentecostais expulsaram os últimos demônio do lugar para arrancar o dízimo dos fiéis. Fico grato que, pelo menos, pude testemunhar essa iniciativa modernizante e libertina dentro do meu bairro histórico, que pode até não ter dado certo, todavia era muito mais interessante que as atuais e assépticas salas de cinema de grandes redes. Agora se é verdade nem garanto muito, porque esta pode ser mais uma memória falseada ao longo dos anos por mim mesmo. Há de se considerar a hipótese.
Não durou muito meu tempo para captar o lugar e absorver a atmosfera delirante pro meu espírito satírico ainda em formação. Minha mãe cortou a liga quando eu estava deslumbrado com a fumaça de cigarro e as silhuetas dos pecadores. Saímos de lá minutos depois quando ela percebeu ter entrado no lugar errado e na hora errada com as três crianças. Tocou a gente pra fora feito cabritos e seguimos pela calçada cheia de gente para ver a multidão aglomerada mais adiante, próximo à Casa Pisco (hoje uma Sapataria Paraibana), na esquina da Travessa da Estrela.
Minha expectativa maior era ver de pertinho os mascarados do Chupico-pico, gente animada do bairro da Sacramenta. A tarde já esmorecia quando o bloco chegou numa algazarra de assustar. Nos acomodamos no meio-fio. Mamãe segura nas meninas e eu soltinho da Silva, muito independente e atento. Estava de olho arregalado no gorilão ruivo no meio do desfile quando alguém entrelaçou os dedos nos meus.
Senti um certo desconforto e estranhei a mão nem tão pequena para ser de uma das gêmeas nem tão grande para ser a de dona Clarisse, minha mãe. Olhei pra baixo e agarrada à minha mão esquerda estava uma mãozinha clara, delicada, surgida do nada. Era uma menina. Uma menina desconhecida com fantasia de alguma princesa, não sei se do Oriente ou do Ocidente. Não tive coragem de olhá-la no rosto. Tremi, porque percebi, sem muita consciência, que estava em um momento importante, numa paquera de carnaval genuína. O coração em descompasso com o surdo e o tamborim, a bateria todinha do bloquinho dentro do meu pobre peito de menino fisgado pelo que talvez tenha sido minha primeira paixão instantânea, daquelas que evaporam assim que o objeto de desejo desaparece e, ainda que fugazes, deixam marcas difíceis de apagar.
Só sei que passamos aquele desfile interminável de mãos dadas, como um casal de aposentados. Eu, extasiado, numa vontade romântica de que aquilo nunca terminasse, que viesse a quaresma, a Páscoa, o São João, as férias, o Círio e o Natal e a gente continuasse ali, numa boa, mão na mão, presos pela eternidade afora. Do meu lado, a menina muda e firme no propósito de ser minha pequena namorada temporária, adorável estranha. Me perguntava por que ela tinha me segurado. Seria engano? Seria por medo do macaco gigante ou de um bêbado atrás das máscaras? Seria meu charme pueril irresistível? Estaria apaixonada? Sim, eu pensava nessa hipótese passional aos sete anos. As mesmas perguntas que faço hoje, quando uma mulher demonstra interesse por mim ou, por algum tipo de loucura ainda não catalogada, declara algum afeto direcionado à minha pessoa, são as mesmas fiz naquele fevereiro de 1986.
Quando o bloco passou, fomos nos desprendendo com delicadeza e ainda lembro a textura macia, o tom rosado das mãos dela, o suor, a temperatura, os dedos suaves, gordinhos. Olhei-a, finalmente. Ela sorriu, linda, com seu delineado todo cagado. E partiu sem deixar pista alguma. Ou eu estou novamente inventando esse final coerente pra minha alegoria do que se repetiria tantas vezes no futuro? Nunca saberemos.
Fiquei naquela de “quem é você? Diga logo que eu quero saber o seu jogo…” por um segundo e ela se perdeu no meio do povaréu. Nos três anos seguintes esperei na mesma esquina aquele milagre se repetir no meio da confusão carnavalesca. Em vão, claro. Era eu perdido no mundo com um amor de carnaval a maltratar meu coração. E olha que a adolescência nem tinha dado o primeiro grito.
Por onde anda essa moça? Ainda me pergunto.
(Texto originalmente publicado na Revista Leal Moreira, adaptado para este blog e para esta realidade terrível que vivemos).
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