
Mesmo com medo da escuridão, ele foi ao quintal procurar os sapatos, que toda vez largava em qualquer lugar. Ou por graça ou por raiva, sempre por hábito. Saltou pela porta da cozinha e sentiu a friagem lhe doer. Era lua alta e cheia de verão de um meio de maio.
Rodeou o poço, foi até o poleiro, olhou debaixo do assoalho, sem a lamparina. Tateou às cegas mais adiante e achou as botinas na raiz do jambeiro. O par coberto da chuva rosa das flores. Calçou assim mesmo.
Voltou para casa e deu um tapa no rádio. O aparelhou emitiu um anúncio de xarope e, em seguida, uma canção antiga. Pôs o bule no fogão e queimou os dedos. Soltou um caralho no automático.
Vestiu a camisa do avesso e as calças sem tirar os botins. Quase caiu. Jogou a tralha toda na sacola, pelou a língua em um gole descomunal de café e ordenou angustiado: “bora, bora, bora, bora!”.
A mulher estendeu a mão e pediu ajuda para se erguer. Saíram noite adentro, em caminho estreito. Ela cantarolava baixo, como se nada fosse com ela.
No trapiche, encontraram o velho. Precavido, o condutor pediu cinco minutos e voltou com a esposa, desgrenhada. Acomodaram-se. Era só uma travessia rápida.
No arranque, o coração do passageiro contraiu até o limite. No começo da alvorada, a mais jovem, num arfar lento, compassado, crescente, garantia que estava tudo bem, que não precisava de tanta agonia, que era a primeira vez, mas não tinha medo de nada, que doía, mas dentro do esperado, que logo, logo, ficaria tudo bem. E ficou: o rebento não esperou. Nasceu ali, ensebado e pretinho, pelas mãos engelhadas da parteira improvisada, quase viva de tanto sono.
O sol surgiu por detrás das copas das árvores mais compridas e o motor do barco desligado permitiu que eles sentissem o choque dos primeiros cantos dos pássaros e provassem o gosto da luz diáfana daquela hora e vissem a cor do ar gelado de quando nasce o dia no meio do rio.
A mãe chorou um oceano no assoalho de madeira, ainda descomposta e suja, e o pai, incrédulo, guardou aquele fiapo de gente entre as mãos e riu da cara da criança, enrugada como a de um mascate.
A embarcação ficou ali parada por alguns minutos, feito fotografia, depois manobrou num arco na água e levou de volta os cinco pra ilha onde toda gente já os esperava.
Vá ouvir O Uirapuru e Grávida.
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