
Entrei no restaurante e estranhei. Estava quase vazio e os garçons, homens brancos de negros cabelos bem penteados, dentro dos seus ternos também brancos, me olharam com alguma curiosidade e simpatia profissional. Engoli saliva com alguma dificuldade e , apesar da noite fria do começo do outono, senti meus sovacos encharcarem, uma leve arritmia e a minha cara esquentar.
O pé direito alto, os arcos clássicos dos portais, a tépida luz amarela dos lustres, a decoração com móveis e antiguidades em madeira escura que, ao mesmo tempo, exalavam um frescor de tudo novo em folha, as toalhas de linho egípcio e os talheres de prata, provavelmente ainda da leva saqueada pelos ancestrais em Potosí. Me vi refletido em espelho próximo a uma cristaleira, a qual realmente guardava delicadas peças de cristal. Meu casaco barato, minha calça jeans, minhas botas de couro sintético, minha barba desgrenhada e cheia de falhas, meu incômodo com a temperatura, nada ornava com a realeza local.
A essa altura da vida, já conhecia as regras que orquestram as posições daquele bando de copos, pratos, garfos, facas e colheres de variados tamanhos e formas e, ainda assim, pensava no trabalho que daria para quem lavaria a louça no fim do jantar. Também era da minha ciência como me viam em ambientes como aquele, a partir da minha experiência brasileira de híbrido social nascido nos igapós da minha gloriosa Pedreira. Todavia era tudo subtexto, pano de fundo, implícito ou mais ou menos inconsciente e não declarado. Ainda que fosse escancarado, minha concentração estava voltada à paella que pediria, segundo um guia local, a melhor da cidade na zona portuária.
Dias antes, no Mercado de San Miguel, em Madri, me perguntaram se era eu mexicano com uma aspereza sutil enquanto esperava meus tapas pra comer ali num dos balcões. Respondi com um portunhol carregado de abuso que não. Minha pele escura, minha deselegância latina, minha cara em um ponto equidistante do Atlântico marcada pela pobreza, gritavam naquelas ruas de colonizadores e balançaram as paelleras de la cocina quando cruzei a porta do estabelecimento para forrar o bucho, agora em Barcelona.
Me acomodei numa mesa próxima a uma das portas imensas que davam nome ao lugar. Era possível ouvir o rugido do Mediterrâneo lá fora. Os barcos atracados ali por perto murmuravam com seus estalos de corda e cascos, o que me lembrava Belém do Pará.
Quando o garçom veio solene coletar o pedido, senti o choque. Não por ele, no entanto. Em uma mesa ao fundo, uma aparição de duas décadas. Estava distante, mas minha memória a puxou de volta de imediato. Havia mudado muito pouco do que recordava. Estava acompanhada de um homem, que parecia um lorde do Norte da Itália pelas roupas e pela beleza. Os dois não tinham modos de turistas de muito longe, como eu. Era um casal que, aparentemente, deixou o sossego do lar para aproveitar uma das últimas noites antes que o frio do inverno obrigasse todo mundo a ficar trancado em casa. Não consegui captar o idioma em que se comunicavam, mas ninguém ali estava num ritual de conquista. Os gestos eram triviais de quem se conhece faz tempo e talvez estivessem em um debate tolo sobre o próximo semestre dos filhos na Lombardia ou na Andaluzia.
Em certo momento, ela sorriu para o marido — eu já havia definido que aquele era seu par definitivo -, e vi pela primeira vez os dentes dela. Só do outro lado do mundo pude confirmar como eram bem cuidados e fulgurantes, como imaginava sempre que ela entrava no Aeroclube pela manhã banhada e ressonada pronta pra ir ao colégio.
Às sete, o ônibus me recolhia na Marquês de Herval com a Alferes Costa e, minutos depois, ela subia na Duque de Caxias, próximo à Perebebuí. Levava duas crianças, que imagino que fossem irmãos menores. Era harmonia e sempre um impacto visual àquela hora da manhã, uma estudante de sonho para mim, apegado ao que a televisão me vendia e bombardeava diariamente como o que é belo e desejável. Era como se tivesse saído direto de um high school da Sessão da Tarde com seus cabelos lisos acobreados e mãos delicadas de unhas polidas e cutículas uniformes, branca como um copo de leite.
Da janela esquerda do último banco, nos fundos do veículo, passei a esperar todo dia que a aluna entrasse para admirá-la. O uniforme era do Gentil Bittencourt, a escola particular com a fachada mais bonita da cidade. Aos 15, eu já sabia que nunca passaria nem perto para para estudar ali — e só estive lá uma única vez, muitos anos depois, como repórter entediado para fazer uma matéria chinfrim ordenada pela diretoria do jornal.
Essa rotina de vê-la praticamente todos os dias durou o Segundo Grau e a acompanhei a se desenvolver como mulher nesses três anos. Já no último ano não entrava mais com os meninos de antes. Os cabelos ficaram avermelhados de tintura e as formas ainda mais sinuosas e harmônicas. Estava sempre sozinha, com um volume enorme de cadernos, livros e apostilas, que um dia nos proporcionou o único contato direto: me ofereci para segurar a tralha num dia de ônibus lotado e ela sem me olhar recusou o favor, com os olhos pregados na janela em direção à rua.
Era minha paixão instantânea preferida no caminho de escola e eu tentava decifrar, dentro do meu silêncio ali atrás, os estados de espírito que ela encarnava no percurso matinal. Como todo mundo, a depender da ocasião, parecia mais ou menos cansada, mal humorada, distraída, preocupada, concentrada, ansiosa, triste, entusiasmada, empolgada, indiferente, apaixonada, rejeitada, melancólica, forte, alegre, triste, enquanto o veículo avançava veloz numa cidade com um trânsito muito mais fluído do que hoje. Era raro, mas acontecia de encontrá-la na volta pra casa, na mesma linha, meio descabelada e exausta, seríssima, sentada com a coluna reta e o nariz helênico.
Depois que o nosso tempo estudantil esgotou, no fatídico 1997, quando reprovei no vestibular, ela sumiu.
Imaginava que ela tivesse sido aprovada em Medicina pelo material que carregava e casado com um mauricinho com sobrenome pomposo da cidade, também médico, e vivesse ainda por perto a frequentar lugares que eu jamais colocaria os pés. Na minha cabeça de então, era o caminho que alguém como ela seguiria sem muito esforço. Minha imaginação era curta e mais ainda para aquela mulher, cuja beleza se misturou às lembranças desse trajeto pueril, num tempo em que eu ainda vivia uma melancolia profunda por ter deixado recentemente a minha escola pública, o refúgio onde cresci e fiz o Primeiro Grau, entre 1985 e 1993, dos 6 aos 14 anos.
Todo dia , ela fazia tudo sempre igual e entrava… não, não entrava. Ela adentrava e retorcia a realidade com sua figura e revolvia toda minha carga hormonal e emocional de manhãzinha, não raro ao som do programa Roberto Carlos em Detalhes, preferido do motorista daquele horário.
Pra mim, era tempo de inseguranças das minhas transformações físicas e mentais num corpo desproporcional, magro, estranho, feio, com uma cara coberta de espinhas que me exilaram na timidez causada pela baixa autoestima. Nem criança, nem homem, solto no mundo, longe do que considerava um abrigo. Tenho certeza absoluta que, se ela dissesse um oi naqueles dias já esquecidos, eu morreria. Morreu de susto e aflição, o pobre. Dentro de um ônibus sujo, ali pela Almirante Barroso. Tão novo, diriam.
Quando chegou a fumegante paella com arroz negro e os mariscos ainda frescos, levantei um brinde com minha companhia. Era um sonho antigo conhecer Barcelona, originado naquela olimpíada já olvidada de 1992, um ano em que estar ali era considerado por mim algo para além do impossível. Era um sonho tolo também comer aquele prato, cujo aroma ainda sinto agora enquanto escrevo. Estava feliz. Aquele acontecimento era um milagre, depois de ter sobrevivido às guerras urbanas das gangues e às estatísticas de preto/pardo da minha adolescência periférica, ter superado a precária educação pública da minha escola municipal e a falta de condições mínimas para garantir a frequência na universidade. Era prodigioso estar do outro lado do mundo no mesmo ambiente em que aquela mulher estava, uma menina branca que, apesar da diferença visível de classe, dividia o mesmo ônibus comigo na capital paraense quando éramos quase infantes.
Ela terminou a refeição e foi embora pouco antes de mim. O casal levantou quando minha sobremesa chegou. Pude perceber que estava ainda mais bonita, como eu previa durante o encanto momentâneo que ela me provocava no passado. Pude registrar, com discrição, o vestido claro, a joia no pescoço, os sapatos de salto, carteira de grife, a pele viçosa trabalhada por um bom skin care. Como em uma trama televisiva iniciada no exterior, os dois alinharam as roupas ao ficarem de pé e ele a ajudou a pôr o casaco. Deram-se os braços e sumiram pela rua. Estavam prontos para estrelar a próxima novela global.
Pensei que mais uma vez estive ali tão perto e invisível para aquela musa temporária, como se ainda fosse o mesmo estudante maltrapilho em um fundo de ônibus, com a diferença, nem tão diferente assim, de agora ser um um adulto mal vestido em um comedouro metido a besta num ritual de aburguesamento e vingança pessoal contra uma vida toda marcada por privações. Simpático como um vereador, paguei a conta salgada sem fazer cara feia e deixei uma boa propina pelo serviço de mesa. Gracias, hombre. Hasta luego. O atendente me sorriu.
Não havia mais porque pensar na passageira mais bonita do mundo, agora perdida para sempre na Catalunha. Ainda assim senti uma dorzinha, um recalque leve, uma inveja incubada do italiano que a conduziu sabe deus pra onde. Maledetto! Era o adolescente desprezado que fui a assumir o controle dos meus pensamentos. Mas a sensação passou rápido. Olhei o entorno e pensei que a vida tinha sido boa comigo. Lá fora a brisa com cheiro de mar que invadia aquela cidade bonita. Entrei no táxi e fui direto pro hotel pra dormir de barriga cheia.
Só voltei a lembrar dessa mulher dia desses, quando estive na minha antiga escola, num desses acasos da vida, e quase sufoco de tantas recordações, sentado em um dos bancos a olhar o prédio modesto e contar as salas que saltei de série em série até a oitava, na Turma 801. A estrutura era a mesma. Contudo estava mais bem cuidada. Nem sinal de pichações e do fedor dos banheiros. Tudo muito limpo, organizado e todos ambientes estavam climatizados, bem diferente da época em que morríamos de medo de perder a cabeça, caso os ventiladores de teto enferrujados se soltassem no meio de uma aula. Na área interna, ônibus escolares amarelos estacionados.
O muro quebrado dos fundos que dava acesso ao matagal cheio de pés de manga, taperebá, jambo e ameixas estava reconstruído; a velha quadra poliesportiva agora possuía um alambrado e estava coberta e protegida das chuvas; a pequena horta onde beijei Débora pela primeira vez e estranhei o hálito das nossas bocas unidas se transformou numa área de educação infantil; o lugar onde Arthur Queixo de Amolar Faca deu uma cabeçada sem querer e quase matou o Bira agora era um refeitório cheio de indicações para manter o distanciamento por causa da Pandemia; a biblioteca da professora Raimundinha estava lá, trancada, com uma plaquinha padronizada a indicar que lá havia livros. Ali que tudo começou, lembrei. O joelho Juvenal, do mestre Ziraldo… Será que Raimundinha ainda estava viva? E o professor Nicolau? E Rita, que me apresentou o Chico Buarque na sexta série? Será que professora Valquíria se curou da ansiedade?
Fiz uma foto da fachada e mandei pelo WhatsApp pro meu melhor amigo da época, hoje um cirurgião-dentista e professor de Física, divorciado e pai de três lindos meninos, cujo mais velho tem a idade de quando eu conheci o pai dele.
_ Lembra disso?
Robson, Marília, Gilmara, Lia, Jose, Luciana, Márcio, Aristóteles, Nazaré, Cleide, Andréa, Kleber, Ismael, Everton, Andreza, Cara de Aborto, Popeye, Dani, Samuel, Tom, Antoniel, Monstrobol, as gêmeas Roberta e Renata, aquela menina do ônibus da escola particular depois que saí dali…
Onde foi parar todo mundo?
A garota do Gentil estaria ainda pela Europa? Quase impossível saber ou encontrá-la de novo. E quer saber? Ainda bem.
O mundo é, realmente, uma pracinha de cidade do interior, onde todos, hora ou outra, vão se esbarrar, mas não muito.
Vá ouvir Detalhes.
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