Nunca a vida é o que a gente espera nem acontece como a gente quer

Pablo Picasso dança em seu ateliê, em 1957. Foto: David Douglas Duncan

Em 34 anos dois meses e 17 dias, a contar do batizado do primeiro filho, nunca deixou de cumprimentá-la, muito menos apreciar, insistente, aqueles olhos de tigresa num ar de senhora respeitável cultivado por ela desde muito moça. Era o dia, finalmente, de fitá-los de perto como nunca antes.

Até chegar ali, sempre dosou gestos, cumprimentos e conveniência. Tinha certo pavor de exagerar na corte e entrar no território perigoso do enxerimento. Quando moço, era o medo de ser considerado um tarado mulherengo franco atirador desesperado qualquer. Depois, já gasto pelo tempo, de figurar como o velho babão patético e sem vergonha.

Havia chegado muito tarde naquele flerte, porque ela se casou muito cedo com um prático, ausente, embora amoroso. No começo, aquela ausência foi vista por ele, praticamente (sem trocadilho), como uma oportunidade. Depois percebeu que, por retidão moral ou apego à tradição, aquela esposa jamais olharia pro lado.

Apesar da solidão de quem vive em terra e tem um amor no mar, ela nunca cogitou um amante. Resolvia-se sozinha embaixo do chuveiro e guardava boa energia para as chegadas, depois das longas turnês no oceano, entre a desconfiança contínua contra o esposo esporádico e o desejo de quem está muito tempo arrasada pela saudade.

Ao apaixonado de plantão, restava uma proximidade fraterna e morna, que não passava de um oi na padaria, uma conversa mole ao passar pelo portão, em comentários insossos sobre o tempo, sobre o futebol, sobre as crianças, sobre as notícias, quem nasceu, quem morreu, quem ficou, quem mudou para nunca mais.

Ainda que nessa superfície sem sal, ele sempre fez toda questão do contato, sempre manteve a paciência em alta. Não se feria com o amor que ela depositava no marido e lamentou, de verdade, o dia em que o marítimo morreu num acidente não esclarecido. Caiu do navio e nunca mais foi visto. O corpo ficou perdido numa cidade submersa ou se converteu em comida de tubarão ou foi parar nas rochas de uma ilha da Martinica.

Por muito tempo, na vizinhança, os fofoqueiros insistiam que um dia o morto voltaria, engalado e cheiroso, como um Dom Sebastião, para rever mulher e filhos e informar que estava sim vivo e agora habitava em Amsterdam nos braços de uma ruiva natural 25 anos mais jovem do que ele.

A viúva enfrentou a perda e o falatório com dignidade e o homem que a esperava não pôde consolá-la de imediato, como ele sonhava quase todos os dias, naqueles anos todos. Almejava tanto a morte do marinheiro que, ao saber, sentiu-se tomado de remorso. Teve certeza de que a tragédia foi provocada pelas rezas do avesso dirigidas ao rival. Pedia que ocorresse enquanto ainda tivesse saúde e pudesse segurar a mulher da sua vida em seus braços livre de qualquer estorvo.

Só que nunca a vida é o que a gente espera nem acontece como a gente quer.

A saúde ia até bem. Ele estava na sala, diante da televisão, a mulher ao lado dele no dia em que soube da notícia trágica mais aguardada. Não festejou, porém olhou a companheira e já pensou na hora nos papéis do divórcio. Viviam em relativa paz e até pareciam se amar, o que não significou muita coisa a partir dali. Até assinar e acabar com tudo de uma vez, demoraram quase três anos. A briga foi dura e ele ficou quase sem nada no acordo mal feito ao qual se submeteu. Foda-se. Só queria ter liberdade para, finalmente, tentar com afinco o que sempre quis.

Ainda se resguardou por mais seis meses depois da separação para a primeira investida real na paixão antiga, tão antiga que nem ele acreditava mais que ainda pudesse guardá-la com algum viço. Mas estava lá, viva.

Depois de muitas conversas no mesmo portão de sempre, trocaram número de telefones pela primeira vez em décadas. Ela perguntou se ele usava WhatsApp. Envergonhado, ele informou que não sabia do que se tratava. Funcionário público, ainda era do tempo do fax e da máquina de escrever. Eram esses os instrumentos de comunicação quando pediu a aposentadoria no já esquecido 1994. O celular era um tijolinho, cujo recurso mais avançado era a lanterna. A mulher riu e com paciência explicou a novidade, recomendou a compra de um novo aparelho e que se inteirasse, que não estava morto, nem era peça de museu, ora porra.

Ele obedeceu e aprendeu rápido.

Falavam o dia todo. Em longos áudios e envios de vídeos de gato ou de bebês em situação de alguma gracinha. Riam juntos, quase sempre. Nem perceberam que era hora de avançar naquela conversa de crianças enrugadas. Então, ele, como um cavalheiro do século, fez o convite à dama. Cafona, pomposo, voz empostada.

_ Tá me estranhando?

Ele se assustou, porque, apesar de já ter alguma intimidade, não percebeu a tirada de sarro.

_ Topo, mas a gente sai pra dançar.

Gingado, rebolado, molejo, destreza nos pés, jogo de cintura, nada disso o homem tinha.

_ Claro, que a gente vai.

Chegou o dia. O dia de vê-la tão de perto que sentiria o músculo cardíaco dela retumbar contra ele.

Enquanto se preparava no pequeno apartamento de solteiro que agora morava, ele remoía o que ouviu na última vez que esteve pelo Bar do Alemão: não adianta, meu caro, velhos não se beijam.

Era uma verdade incontornável: velhos não se beijam.

Não tinha parado pra pensar, todavia percebeu justo naquela hora, pouco antes de encontrá-la. Nunca vi dois idosos entregues a saborear línguas e beber a saliva um do outro. Murmurou:

_ Velhos não se beijam.

No máximo, eram umas bitoquinhas, um roçar de leve de lábios, como se as bocas tivessem morrido ou se tornado um local de acesso proibido.

Entristeceu-se.

Os mais de setenta anos lhe abateram com a constatação de que o tempo leva para longe uma das maiores graças de amar. Teve medo de ficar frente a frente com a sua paquera, que, na cabeça dele, era a mesma mulher que o desassossegava na juventude, sem que a visse como a velha que, realmente, era.

Ficou na frente do espelho. Primeiro nu.

Era um idoso quase magro. A pança mole e pelancuda destoava um pouco do resto descarnado. Os peitos estavam caídos e já havia sobra de pele nas coxas. Havia perdido pelos e os que sobraram estavam alvos. O pescoço se mostrava meio seco e as mãos manchadas com pintas de sol. O saco pendia feito com papo de peru.

Agradeceu ainda ter alguma virilidade e se vestiu da melhor forma possível.

Arrematou a gola da camisa, olhou para si pela última vez antes de sair de casa, já dentro da roupa: agora parecia ter poucas rugas e não sustentava nenhuma careca. Ao contrário, tinha uma boa cabeleira acinzentada. Não estava mal para idade. Talvez as sobrancelhas fartas demais, as orelhas parecendo maiores, o nariz sem a simetria da juventude e os olhos opacos. Porém, o geral formava um conjunto razoável. Avaliou e quem sabe passasse por 65. Até 60. Era otimista.

No caminho, recordou quando ele a via de forma eventual, arrumada ao lado do marido viajante a caminho de alguma solenidade da Marinha Mercante. Uma beldade marrom, de cabelos encaracolados, fulgurantes. Estava sempre em vestidos que desenhavam as formas, as curvas de uma mãe ainda jovem, bonita, volumosa, desejável.

Ao rememorar tantos detalhes, concluiu que o tempo não a magoou em nada. Muito pelo contrário, os anos imprimiram a ela uma formosura enternecedora de avó com os mesmos olhos felinos de quem está no começo da vida. Sentiu o bicho da insegurança lhe roer e teve a sensação de que a proximidade atual o tinha transformado apenas em um melhor amigo tardio para dividir aqueles vídeos bestas de Internet e agora a companhia perfeita para o baile da saudade.

Não se deixou abater, não apesar de tudo.

Sem demora estava na frente à casa dela. Perfumado e penteado. Por muito pouco, poderia ter ganhado o adjetivo elegante. Levou um vaso com flores, anacrônico. Ficou com medo de parecer ridículo com rosas. Eram gerânios.

Cinco eternos minutos depois de bater na porta, ela abriu. A primeira reação foi rir do presente.

_ Um romântico a essa altura do campeonato. Vou guardar na cozinha e espero que morram antes que eu pare de rir. Se levo isso comigo, vou perder pelo salão.

Ficou sem graça e suou. Disfarçou bem com um trunfo.

_ aprendi a chamar o Uber. Minha filha me ensinou.

O carro chegou. Aconteceu como havia de ser: continuaram as conversas do dia a dia e tentaram bailar, o que não deu muito certo. Ele se atrapalhava nas próprias pernas e ela gargalhava da falta de jeito dele. Nunca a imaginou como uma exímia dançarina que ela era. Chegaram num acordo para dançar com poucos e vagarosos movimentos, sem firulas, ainda que com sintonia, dois pra lá, dois pra cá.

Era quase uma quando voltaram suados e descabelados, felizes. Na porta, algum constrangimento, mão na mão, silêncio.

Ela tomou a iniciativa.

Um beijo fluído, sincronizado, úmido, com línguas e vontade, mãos na nuca, olhos fechados, desejo no ventre e a respiração pesada de quem esperava por aquele momento.

Pararam aos poucos.

Ele segurou o rosto dela com ternura. Beijou-lhe a testa, o nariz e os lábios, de novo, de leve. Ela sorriu e devolveu com alguma timidez. Disse um adeus abafado perto da boca do homem e entrou com o coração aos pulos.

De sangue quente, o senhorzinho virou as costas e se pôs a caminhar, meio lento, no compasso da idade, o peito agora em brasa. Teve que concordar com o homem do Bar do Alemão, ele estava mais do que certo: de fato, velhos não se beijam.

E voltou pra casa, entre nuvens, no calor da madrugada, a sonhar, de novo, como se agora tivesse seus 20 anos.


Vá ouvir Dois pra lá, dois pra cá.


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