
AVISO: SE VOCÊ TEM SENSIBILIDADE A DESCRIÇÕES DE CENAS FORTES, NÃO LEIA ESTE TEXTO.
Cheguei na frente do prédio e o cheiro já era perceptível. Era o fim do caso e meu primeiro contato direto com essa cobertura. Havia dez dias, os jornais começaram a dar destaque pra história. Primeiro com a comunidade inteira mobilizada. Homens e mulheres saíram às buscas pelas matas, rios e igarapés da região. Uma vigília sofrida de gente pobre, de todas as idades, desde que as meninas sumiram, naquele vilarejo em Santa Izabel do Pará.
A mãe estampou a capa dos impressos quando o assunto ainda era um mistério. Os espreme-sai-sangue não perderiam o caso por nada nesse mundo: um duplo desaparecimento de crianças, uma mãe em desespero, uma comunidade assustada numa região rural e paupérrima, ao alcance de qualquer equipe de reportagem e da curiosidade mórbida da capital, que se alimentava do esdrúxulo, do bizarro e da sede por linchamentos, como na idade média, com direito a tochas e a gritos de horror.
Na imagem, a mulher sustentava olheiras profundas, a magreza pronunciada, rugas ainda mais evidentes de uma vida sem glória nenhuma, as mãos ossudas. Acho que não tinha mais do que 40 anos, mas, parecia uma centenária. O olhar fixo das mães que sabem mais do que todos sobre os próprios filhos e, o pior de tudo, têm consciência acerca da totalidade da angústia a que estão submersas. O registro fotográfico a capitou à beira de um igarapé a pousar, na corrente d’água, uma cuia que levava no interior uma vela acesa. Outras candeias já flutuavam no pequeno rio. Era noite alta e a luz das chamas forçava algo de fantasmagórico para a notícia, que já era trágica, independente de qualquer cenário. O jornalismo nunca decepciona quando o assunto é pisotear a dor alheia, principalmente, dos que não tem proteção nem força alguma para se defender ou revidar.
O gesto era um ritual, uma crendice, uma súplica. Há dias a mulher e os vizinhos faziam buscas por conta própria para achar as garotas de 7 e 10 anos. A polícia e demais autoridades se empenharam no caso, sobre tudo, pela repercussão enorme feita pela imprensa. Mas, enquanto a procura oficial se atinha ao horário comercial, a população e a família se mantinham incansáveis para solucionar o sumiço. Tanto que, como último recurso mais acessível, recorreram aos espíritos da floresta na empreitada. Os lumes eram um pedido de socorro às mães d’água para indicar onde estavam as benditas crianças. Afinal, as entidades que mandavam nas águas doces também eram mães e entenderiam aquela agonia. As iaras devolveriam as meninas? Teriam as pequenas entrado na mata para sempre ao fugir de um caipora? Estariam reféns de um encantado maligno, como o jurupari? Viraram comida para o cíclope mapinguari? Teriam sido puxadas para o fundo dos rios por um boto diabólico? Ou morrido afogadas numa brincadeira qualquer e levadas pela correnteza?
Todas essas hipóteses fora e dentro do mundo real foram levantadas e comentadas em cada sala e cozinha da pequena vila sob as lâmpadas incandescentes pelos que não achavam explicação nenhuma para o desaparecimento e mantinham a esperança de encontrá-las ainda sãs e a salvo de todo mal.
Até que prenderam um homem.
Um caboclo de pele clara de seus 50 anos, problemas com álcool, a fala difícil, olhos vermelhos, a musculatura bem definida, apesar de franzino, de quem trabalhou como braçal na juventude, cabelos encaracolados já nevados pela idade. Era vizinho da família das meninas. Alguém da vizinhança disse à polícia que elas foram vistas com ele pela última vez. Caminhavam em direção a uma trilha que daria em um furo de rio. O acusado negou e deu declarações confusas à imprensa sobre o que sabia. A prisão temporária foi transformada em preventiva. Estava agora à disposição da Justiça. Depois de uns dias no xadrez, ele confessou pra, em seguida, negar novamente e apresentar uma terceira versão.
Coincidência ou não, depois das velas no igarapé, não demorou, um pescador a bordo de uma canoa viu um amontoado de urubus às margens de um fio d’água de difícil acesso. As aves disputavam a comida entre si naquela lama, agora farta: a busca havia terminado.
A quilômetros dali, estava numa ronda normal para o caderno de Polícia e uma das tarefas era seguir para Superintência de Castanhal para apurar novidades sobre o caso. Desde o início das notícias, era a primeira vez que estava responsável por escrever sobre o caso. Assim, fomos pela BR e chegamos, Marcelo, o fotógrafo, e eu à sede da polícia. Por sorte, demos de cara com um investigador, que mastigava um pedaço de pão com manteiga e segurava um copo de café. Alguma novidade sobre as meninas? Ele apontou a direção com os beiços e informou sem interesse nenhum:
_ Parece que tem alguma coisa lá no IML, mas não sei direito.
Entramos no carro e partimos para o necrotério, que não era tão longe. Por sorte ou azar, chegamos primeiro ao local. De fora, o cheiro forte me já cegou. Era um edifício novo, recém inaugurado. Longe da ideia de morgue obscura e suja, era amplo e asseado, luminoso, como um palco bem construído para o espetáculo da morte. Entramos sem muita cerimônia. Vazio. Marcelo estranhou, de máquina em punho.
_ Vou procurar alguém pra pegar alguma informação.
Uma faxineira apareceu.
_ ah, moço, eles foram tudo pra rua por causa desse caso. Não sei o que foram fazer. Mas sei que chegou coisa aí.
A mulher foi embora e Marcelo voltou, logo em seguida. Pálido, os olhos verdes arregalados, o bigode molhado de suor, trêmulo, respiração ruim.
_ Eu vi.
_ O que?
_ Elas…
_ Onde?
_ Estão ali.
Ele apontou um vão, como um pátio aberto, sem cobertura para que luz solar iluminasse tudo, cuja entrada maior ficava por trás da recepção, se a memória não me falha. Percebi que havia outro acesso e inadvertidamente me dirigi até ele, enquanto ignorava meus sentidos.
Dei de cara com a cena: os dois pequenos cadáveres estirados no chão, negros de podridão e sedimentos do mangue, inchados pela umidade do tijoco. Desviei os olhos o mais rápido que pude, mas vi além do que precisava ver. Diferenciei a maior da menor. Um deles, o da mais jovem, estava sem a mão, que descobri depois, foi decepada por um golpe de facão ao se defender o agressor. E a outra tinha tinha um braço ressequido, roído pelos urubus e de cor mais clara por não ter sido totalmente enterrado. Nos rostos, já desfigurados pela decomposição, a dor da morte violenta e do desgosto da última hora contra quem cometeu aquele absurdo.
Meu café da manhã veio até a garganta e tive que ir para fora do prédio para respirar. Em seguida, as outras aves de rapina, meus colegas de imprensa, se aglomeraram diante do edifício, já fechado aos jornalistas nesse momento, depois que os responsáveis chegaram e perceberam a presença indesejada do meu parceiro fotógrafo. Corremos todos para a delegacia, agora para ouvir o delegado responsável pelo caso. Burocrático,ele confirmou o culpado, contou como o anônimo achou os corpos, reforçou manutenção da prisão e auto elogiou o próprio trabalho na liderança das investigações, aquela lengalenga toda de funcionário público.
Saímos depois da coletiva improvisada. Era a manchete do dia seguinte.
_ Tu não vais passar essas fotos pra edição, não é?
_Não. Fiz no impulso, só pra registro. Quer ver?
_ Porra, Marcelo.
Voltamos calados pra redação, em uma hora de viagem. Estava impregnado daquele fedor e da sensação de derrota, de perda, de algo espatifado dentro do prédio, dentro de mim, como um fracasso perpétuo, um dano que forja pinturas que jamais se apagam na cabeça dos que testemunham essas ruindades. Pensei nas velas acesas e na luz no rosto da mãe naquela fotografia. Como estaria agora? Teria alguma força? As entidades responderam, afinal, os apelos da mulher. Vi a pequeneza das notícias, no quase nada que era a função de relatar um dia horrível para preencher espaço num papel que, no dia seguinte, forraria carros de madame ou embrulharia peixe na feira. De como essa história seria mais uma a ser esquecida entre tantas piores que viriam a acontecer — o tempo, após tantos anos, provou que essa era uma previsão certeira.
Semanas depois o acusado pelas mortes foi encontrado morto na cela onde estava preso, em Americano. Deu no jornal: brutalizado feito um Cristo e enforcado como um Judas; suicidado, como diziam. A pena capital existia acima de qualquer lei e vinha a galope, diferente dos corredores da morte dos documentários americanos, com os condenados a aguardarem anos a sentença final. O inferno era aqui mesmo e o buraco era mais embaixo
O motorista do dia, ao meu lado, comentou o assunto:
_ Esse mereceu.
O hall iluminado veio como um flash, o mesmo mau cheiro, o mesmo engulho. Abri minha janela para respirar. O ar fervente da rua quase queima minha cara:
_ Calor do caralho… Tem uma apreensão na Marambaia. O dia parece que vai ser longo.
E seguimos a ronda.
(Vá ouvir Rosa de Hiroshima)
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