Motim

Photo by Hasan Almasi on Unsplash

Numa terça-feira de novembro, cheguei no trabalho puto da vida, larguei as coisas em cima da mesa e disse:

_ Não fico nessa merda mais um minuto se ela continuar!

Os dois me olharam já tensos aquela hora da manhã, cada qual diante do seu computador. Bragança arregalou os olhos pequenos, segurou as próprias mãos e com jeito de matuto de sempre, muito sério, despejou uma lealdade que eu não esperava:

_se tu fores, eu vou também.

Olhamos juntos para Portel, uma incógnita. Nem todos os sinais de estar até o pescoço na conspiração me convenciam de que ele permaneceria do mesmo lado da trincheira quando nos levantaríamos e partiríamos para morrer nas mãos dos inimigos. Mas não titubeou. Com as mãos da cintura, a boca cerrada e o nariz apontando o céu, como fazia ao exibir seus orgulhos, ele soltou:

_ meu amor, eu é que não vou ficar aqui sozinho com essa megera. Se vocês forem, eu vou também.

O pacto final estava mais do que selado e as consequências seriam extremas. Fosse para quem fosse. Subimos ao refeitório para acertar os discursos e abrir os mapas. O dia estava calmo, o que para nós não era rotina — o normal era o apocalipse. Os pássaros cantavam nas matas mais próximas e a grama molhada da chuva da noite anterior exalava um cheiro bom de clorofila. Os contínuos transitavam lerdos com papéis na mão, as serventes desfilavam com as bandejas de café, os motoristas coçavam o saco e ninguém desconfiava que ali iam três suicidas. Dentro do estabelecimento cheio de mesas vazias, fizemos os pedidos e sem demora meu telefone tocou. Era a Planaltina, nossa diretora.

_ Onde vocês estão?

Pela inflexão na voz e pela pergunta, a casa havia caído.

Respondi no automático

_ Viemos tomar um café.

_ Os três juntos?

_ Os três.

_ isso é comum? Saírem os três e deixarem a sala sozinha?!

_ Raramente, acontece. Só que…

Desligou.

Agora não tinha mais volta. Descemos calados e rápido rumo à guilhotina.

Ao abrir a porta, estavam as duas em pé, de braços cruzados. O rosto da diretora estava rosa choque (por isso não provoque!), o que fazia um belo contraste com seus olhos verde-mar. Um mar nada tranquilo, uma ressaca violenta de fogo, um tsunami pra cima de nós. Era loira, alta, porte de general germânico quando queria, e, justiça seja feita, quase nunca queria. Era uma mulher prática, fácil de lidar, que não tratava nada nem ninguém com arrivismo. Porém era a hora de mostrar quem mandava em quem.

_ então, é isso? Uma rebelião contra mim!?!?

Ninguém se pronunciou, então resolvi, responder sem gaguejar, sem vacilar, sem tremer, nem mijar nas calças, nem chorar. Saiu pouca coisa:

_ não é. Mas a situação está impossível.

– Falei que já estava resolvido! Ninguém precisava fazer isso. Cadê o respeito de vocês pelo trabalho? Vocês acham que tem alguém brincando? Vocês acham que viajei até aqui pra isso?

Piracicaba atrás da nossa alemã manteve os olhos saltados de sempre, como quem tem bócio, e da linha fina que compunha a boca entortou um sorriso quase invisível de ironia e degustação pela derrota que se desenhava pra nós. Ela estava na dianteira. Levou um petardo no peito ao ouvir da diretora:

_ Ela não vai ficar! É isso mesmo! Já á estava mais do que acordado. Ela mesmo pediu pra sair. E vocês, me vem com essa agora?

A mulher na retaguarda comprimiu os lábios e levantou o queixo, em sinal de dignidade, como se não estivesse tão preparada para saber do que supostamente já sabia. Pareceu que a decisão foi tomada ali na nossa frente ou que só então a ficha caiu para ela. Interrompi a diretora:

_ Posso falar?

Engoli a grossa bola de cuspe seco que se formava na minha boca e apertei a ponta da língua com os dentes para criar nova saliva e umedecer a fala. Respirei fundo, como quem vai pular do penhasco.

_ Você disse que teríamos a reunião ontem, não foi? Pois é. Esperamos o dia todo. Não houve nenhuma resposta. Ninguém falou mais nada. Lembra que liguei? Poderia ter dado algum retorno. A gente estava esperando…

_ Não precisava vocês fazerem isso. Já estava tudo acertado.

_ Ninguém tinha essa informação até hoje, aqui nessa sala.

_ Não vou admitir uma rebelião contra mim.

_ Não é rebelião. Admitindo ou não, eu não fico mais. Se ela fica, peço demissão neste momento.

Dei o passo final pra entrar na fogueira. O clima ficou pior.

Lá fora, aos invés de escurecer com nuvens de chuva, como acontece nos filmes de terror, alguém aumentou a potência do sol e as plantas quase morreram e os seres vivente foram buscar algum sombra. Planaltina perdeu o resto da paciência:

_ Quantas vezes vou ter que repetir: ela já pediu para ir embora! Vocês estão me ameaçando!

Três dias antes, a conversa com ela havia sido muito, muito, muito mais suave. Era um domingo ensolarado, céu azulzinho. O rio estava com seu verde escuro ressaltado pela luz do dia e as ruas tomadas de poeira que pintava de ocre tudo ao redor. Apanhei a chefa no aeroporto com o Carro das Bichas, como chamávamos o Uno vermelho que nos servia pra tudo. Estava sorridente, gentil e incomodada com o calor. Era a melhor pessoa da agência que poderia estar ali, naquele ponto crítico da nossa trajetória cheia de nós do roteiro prestes a fechar: contrato com o cliente no fim, rumores de mudanças na diretoria, insatisfações por todos os lados, temores e pressões por ir embora ou não da cidade e uma contenda declarada na equipe.

Planaltina deixou a família na metrópole e cruzou o país para saber o que estava a acontecer no trabalho, na cidade que vivíamos, todos forasteiros, isolada por rios e estradas quase intrafegáveis. Levei a mulher direto à melhor peixaria da região, onde Bragança e Portel já nos esperavam. Sentamos à mesa muito naturalmente, como se aquele encontro não fosse planejado pelo trio muito antes, com direito a desistências e a discussões sobre a pauta e sobre como introduzi-la sem parecermos meros fofoqueiros.

Horas antes, Portel havia pulado fora:

_ Não vou, bicho. Cheguei faz pouco tempo aqui. Vai ser complicado. É melhor tu falares sozinho.

_ Não vou fazer isso sozinho porra nenhuma. Ou vem todo mundo ou não vai ninguém.

_ Não tem como. Fala tu. Eles te respeitam.

_ Então, o plano fica por aqui. Se não for um acordo nosso, não tem negócio.

Frustrados, saímos todos. Fui para casa, encapetado, com o coração tomado de ódio. Descumpriria a promessa e faria sozinho sem que eles soubessem. Já estava decidido que seria melhor perder a cabeça do que aturar demandos. Menos de uma hora antes de ir para o aeroporto, Portel repensou e me avisou por telefone:

_ Tá bom, eu vou. Encontra com a gente lá peixaria.

_ Sério?

_ Sério.

_ Te amo.

_ Para, viado. Te arruma, caralho.

_ Combinado.

À mesa, Planaltina agora ouviu tudo de olhos arregalados e orelha em pé, entre um “meu deus” e outro. Ela não imaginava o nível de comando que existia em uma das principais contas da agência. Um contrato milionário em risco por causa de abuso verbal e assédio moral a rodo. Não fazia sentido desgastar a base operária, nós, ao ponto que estava. O trabalho em si já era problemático e com as dezenas de demandas de imprensa a serem respondidas por causa das queixas da população irada com o empreendimento. Fora os protestos e manifestações liderados por indígenas armados de arco, flecha, tacape e terçados, sem contar com carroceiros, oleiros e o todo mundo que todo dia encontra um motivo para levar todo tipo de reclamação ás televisões locais.

_ Teve um dia que ela simplesmente disse que era para permanecer olhando nos olhos dela enquanto ela falava. Já era muito tarde, quase dez da noite. O expediente tinha começado às sete da manhã e já entrava pelas dez da noite.

_ E no dia que ela perguntou se eu sabia o que era clipping? Eu trabalho há anos com assessoria. Ela vive subestimando todo mundo. Trata a gente como se a gente fosse estagiário. Só na patada.

_ Nem vou falar como é a relação comigo, porque pode parecer que estou com mania de perseguição. Mas…

Planaltina, então, quis ouvir Portel, o mais novo na equipe, o que tinha proximidade com a denunciada. Ardilosa, como uma boa investigadora, a diretora percebeu que ali, justo naquele elo, poderia extrair uma versão mais próxima da realidade ou desmascarar uma possível farsa.

Ele tomou um gole de bebida e molhou os lábios, antes de falar.

_ È isto. A relação com ela é péssima. A gente vive sob tensão. É tudo isso que eles disseram e mais um pouco, de verdade. Não é exagero.

Era o que faltava para dar crédito às denúncias. A diretora estava convencida, enfim. Havia percebido o erro na escolha do comando e precisava agir para desfazer o equívoco, restituir a paz interna na equipe e manter todo mundo firme na produção e no atendimento daquela plantação de pepino com abacaxi que tínhamos que lidar todo santo dia.

Abrandamos a conversa, afinal, enfiamos a bandeirinha no território inimigo, a primeira até a vitória final. Destroçamos o resto de tucunaré e brindamos entre sorrisos. Respirei com algum alívio, crente que a batalha estava vencida.

Mas não era bem assim.

Na segunda-feira, Piracicaba voltou de viagem e desapareceu de nossas vistas junto com a diretora, o que causou apreensão de imediato.

_ Puta que o pariu. Ela estava fingindo. Agora a outra deve estar fazendo a nossa caveira. Amanhã é demissão sumária, na certa. Não vou dar esse gostinho pra essa filha da puta. Saio antes.

Só no outro dia, com o chamado durante nosso café de confabulação, que a reunião iniciou. Agora estávamos todos à mesa. Entre uma pausa e outra, a medir cada movimento e palavra para não provocar mais ondas elétricas de rancor e fúria. Sentia-se a respiração um do outro e baba amarga se formando no canto da boca de cada um.

_ Eu posso falar?

Planaltina se virou, expressão grave, os olhos fixo, cheia de autoridade, dirigida a quem pediu a autorização:

_ Não. Quem vai falar agora são eles. Vamos evitar que a situação piore.

Perdeu mais uma otária, pensei e sorri com alguma sutileza.

Bragança foi o primeiro da sessão. Estava abalado. Ele se pronunciou, enquanto piscava e mexia muito as mãos numa ponderação que parecia mais uma justificativa do que uma acusação. Concentrou no conflito entre eu, o mais antigo na equipe, e a gerente. A fala era atropelada e nervosa, angustiada. Ele se sacudia um pouco enquanto se expressava, como uma convulsão em câmera lenta. A mensagem nas entrelinhas, na linguagem gestual, não deixava dúvida: estávamos desesperados, sim.

Portel foi, de novo, o fiel da balança. Para ele, a situação era mais difícil. Enquanto Bragança e eu, já havíamos entrado em conflito direto, um menos do que o outro, em algum momento as bombas estouraram em cima de nós. Já com Portel era o oposto. Recém-chegado como ela, com perfil organizado e profissional semelhante ao da nova funcionária, criou-se entre os dois uma simpatia de colegas, que ele cuidou que parecesse uma reserva de lealdade. Carregou bolsa, deu dicas de moda, ensinou onde comprar tudo mais barato, tentou enturmá-la e conversar sobre a oferta de homens descomprometidos na cidade, sempre em tom de galhofa, leve, ultra simpático, bem humorado e respeitoso na medida certa:

_ Olha, mana, tem cada cafuçu, viu? Um mais gostoso que o outro.

Ela ria.

Muito estratégico, Portel a ajudou a arrumar um bonito apartamento no mesmo prédio que o dele. Pareciam grandes amigos e era o que me deixava aflito. Será que é um aliado ou um agente duplo?, eu me perguntava. Na hora de abrir a boca na frente da nossa algoz, ele deu um sorriso de canto de boca e olhou para ela com certa ternura, como um pai olha a uma filha que deu um passo errado. Prendi a respiração e cerrei os olhos. Esse patife vai dar pra trás agora!

Dois segundos de silêncio.

Com doçura, ele contou os pecados da amiga e toda a escuridão que ela trazia ao ambiente de trabalho com seu humor horrendo, suas ordens enviesadas e sem sentido, suas perseguições gratuitas, seus ralhos de avó enfezada, suas tentativas de humilhações e toda insurgência que esse comportamento tóxico provocava em cada um. Quando ele terminou de desfiar seu rosário, a mulher estava de olhos baixos, entre pensativa e arrependida. Uma ré ciente da sentença.

Fim da guerra. Vitória do baixíssimo clero.

Estipulou-se mais um mês para a saída da gerente, sem substituto nos meses seguintes. Teríamos agora que dar conta sozinhos e nos autogerir como anarquistas perdidos no meio do mato sem nenhum cachorro. Ela se encastelou em um hotel para preparar o retorno.

No último dia, apareceu no escritório para limpar as gavetas. Entrou em silêncio, recolheu os trecos e disse qualquer coisa, como um pedido de desculpas, abafado por um nó na garganta que expulsou à força as lágrimas dos olhos imensos que ela tinha. Passou por mim com o andar pesado e os cabelos esvoaçantes de uma hippie atemporal, que talvez tivesse realmente sido antes da transformação que o mundo corporativo e a necessidade de sobrevivência impunham a ela ao longo dos anos.

Chegara naquela cidade perdida da Amazônia brasileira para gerir a comunicação de uma mega obra. A ambição era chegar à diretoria de atendimento e a um salário ainda mais gordo. Voltava agora para o interior de São Paulo sem emprego por causa de três jornalistas nativos ignorantes e inferiores ao seu valoroso currículo cujas maiores glórias era produção em um programa de auditório com um apresentador idoso e crianças cantoras e uma companhia de saneamento no interior do país. Pôs o cabelo pra trás da orelha, ajeitou a bolsa e bateu a porta, os olhos para baixo.

Chamou o táxi percorreu o novo bairro cheio de casinhas iguais, passou pela estrada de acesso com asfalto recente e movimento intenso de um povoado em crescimento, seguiu pelo centro da cidade já caótico de tanta gente, atingiu a rodovia até o aeroporto onde pegou o avião e, aparentemente, levou apenas poeira e amargura daquela experiência curta.

Era o fim de uma temporada em que ela se apresentou como a uma excelente vilã. Quando saiu de vez, nos entreolhamos, mais tristes do que aliviados.

Bragança levantou e abriu para olhar o carro partir, talvez para se certificar de que era o fim de verdade. Portel, com a mania de limpeza, foi arrumar mesa de trabalho.

Eram umas quatro da tarde, peguei um café e fui olhar o resto do dia. Um gole e o vapor embaçou meus óculos. Ainda tinha muito serviço para tocar no chão de fábrica até o final do expediente.

Será que ainda estaríamos ali, juntos, no ano seguinte? Entrei de volta para fazer o que precisava ser feito.

(Vá ouvir Vai trabalhar, vagabundo)


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