Eu, talarico

Chovia. Das chuvas de Belém em janeiro e ela me beijou minutos antes de eu encarar o temporal para atravessar a cidade dentro de um combi velha do transporte clandestino para voltar pra casa. O guarda-chuva emprestado não impediu que a tempestade me ensopasse. Trovões, relâmpagos, coração disparado e a certeza de que fiz uma grande merda. Enfim, demos o passo sem retorno possível. Quatro anos depois daquele pacto debaixo d’água, a mulher me olhou entre uma garfada e outra de macarrão do Spoleto. Nem sinal daquela primeira noite ou de nada — os olhos vazios. Anunciou com tranquilidade e sem emoção aparente: não quero mais.

Uns seis anos antes, eu a tinha visto pela primeira vez. Entrou de jeans, blusinha de alça e rabo de cavalo em uma das salas da universidade para uma oficina de roteiro de cinema ou algo do tipo. Caloura, morena, minúscula. Me impressionou com os olhos enormes, o sorriso torto e voz profunda e grave demais para uma moça tão pequena. Trocamos algumas palavras e telefone. Ficou no ar uma tensão sexual que eu não compreendia muito bem aos 23 anos.

Aos poucos, aquele primeiro encontro se desdobrou em dezenas de conversas e criamos vínculos de forma rápida e definitiva, se é que existe algo definitivo aos vinte e poucos anos. Descobríamos relações mútuas, coincidência, semelhanças, diferenças. Nos ajudávamos, ríamos de tudo e ouvíamos com atenção as dores um do outro. Eu, um pobre morador da periferia da cidade aspirante a uma profissão elitizada e sem nenhuma representatividade para mim naquele começo a procura de um lugar ao sol. Ela, uma interiorana órfã de pai com muita vontade de abraçar as oportunidades que lhe chegassem às suas pequenas e frágeis mãos. Dois perdidos, embora ela tivesse muito mais fé no futuro do que eu, sempre descrente e pessimista.

Nasceu ali uma ligação tão grande ao ponto de passarmos noites inteiras ao telefone, numa época em que o ponto alto da comunicação não eram redes sociais ou aplicativos de mensagens, mas, sim promoções de operadoras de telefonia para falar de graça pelo celular durante o fim de semana inteiro. Era o que fazíamos. Já são sete da manhã, precisamos desligar, vamos dormir, um dizia para outro.

Vivemos uma amizade fecunda, de muita identificação, confidências e trocas emocionais e intelectuais. Sem mais o apelo juvenil do sexo do começo, pelo menos, naquela fase. Afinal, namorava de portão uma mocinha colega de escola de minhas irmãs e contei a ela.

Estava tudo muito bem, mas as ligações rarearam aos poucos até cessarem, sem que eu entendesse muito bem o motivo. Os horários na universidade mudaram, arrumamos o tão sonhado trabalho como estudantes para ter pelo menos o que comer no período das aulas e o trocado para o ônibus, cada um foi lidar com a própria vida em um tempo de urgências, exaustão física, leituras inúteis e sacrifícios para terminar o curso de Jornalismo.

Ela sumiu. Ou eu sumi. Nem sei mais.

Só sei que emergiu, tempos depois, como a namorada de W., como o chamarei aqui. Numa tarde qualquer, saíram do estágio e se beijaram em frente a um prédio residencial na Almirante Barroso, assim ele mesmo me contou em frente da casa dele, em uma das minhas muitas visitas inesperadas. Decidiram os dois repetir a dose outras vezes e namorar.

Fico feliz por vocês, ela é muito gente fina, disse eu, na ocasião. Sem ironia, sem inveja, sem segundas intenções ou abalos.

De fato, estava contente. Os dois combinavam muito. Ela e ele foram para mim uns achados naqueles anos de tantas descobertas. Duas pessoas que reuniam tudo que eu cria como qualidades. W., então, nem se fala. Era uma mente brilhante. Um escritor em potencial, um músico em formação, um chargista de futuro, uma criatividade infinda. Doce, triste, ácido, amargo e amoroso, de cabelos longos e expressão taciturna de um trovador medieval de bonitos olhos melancólicos, o que escondiam uma fragilidade de menino e um enorme coração sensível. Ainda por cima, cheio de referências que que não tinha por ter nascido em família menos pobre do que eu, viver em outros ambientes e ter estudado em melhores escolas.

Não demorou para ficarmos amigos muito próximos. Enquanto a gente voltava de ônibus juntos da universidade para a Pedreira, os laços se firmaram à base de piadas, tiradas, sacadas, afinidades e um descontentamento, um pouco de revolta e certa tristeza com o mundo, coisas que nos colocavam no mesmo nível de energia, na mesma direção.

Não demorou, passei a ir em rodízios de pizza baratos com W. (quando minha barriga começou a despontar) e a frequentar a casa dele em aniversários e efemérides muito divertidas repletas de comida deliciosa que a mãe dele fazia. Como meu amigo tinha computador e eu não, cansei de chegar à tarde, do nada, logo após o almoço, e pedir para usar a máquina para fazer minhas tarefas de universitário. Ele muito solícito, muito educado, abria as portas de par em par. Lá, partilhamos de uma amizade real, que duraria muito mais do que eu poderia crer e renderia um trabalho de conclusão de curso com nota excelente e elogios rasgados da banca examinadora.

Quando passou a namorá-la, minha amizade com W. já ia longe e forte ao ponto de sermos confidentes. Já meu contato com ela havia esmorecido pela distância, porém, tomou um novo fôlego, afinal, passamos a conviver de novo por causa do nosso homem em comum. Não era raro ver nós três juntos e, logo, fiquei na incômoda posição de confidente dos dois. Em separado, cada um com suas angústias e queixas me relatava o que não ia muito bem na relação. Bom ouvinte e bom amigo que era, driblava a saia justa de agente duplo com sigilo absoluto sobre o que me diziam. Nada chegava ao outro por meio de mim. Eu era um túmulo.

Com o tempo, ela e eu retomamos a amizade tão fortemente quanto antes, a que havia sido suspensa naquele começo que já ia longe. Falávamos com frequência outra vez, quase todo dia, e até saíamos só nós dois, sem a presença de W. Estávamos unidos de novo. Para ter noção dessa proximidade, para chegar à casa do namorado, ela precisava descer em uma parada na Avenida Doutor Freitas e andar uns cinco quarteirões até o destino final. Quase no início do caminho, tinha a minha a casa e por tantas vezes fui voluntariamente escoltá-la até lá para garantir que chegasse segura. Uma gentileza que fazia com muito gosto e nenhum interesse direto.

Era para ela que contava minhas decepções, rejeições, meus segredos e exibia os intestinos da minha relação da época, que acabou deteriorada entre mentiras e pequenas e grandes traições. Dela, eu recebia palavras doces, compreensão e lições, que muito me serviram. Era afeto puro de uma amiga valiosa em níveis que nunca atingira antes.

O estalo de que estava tudo muito estranho aconteceu no Cine Líbero Luxardo, quase no Natal. Fomos em trio assistir A felicidade não se compra e ocupamos, de forma natural, as poltronas. Ela ficou na do meio, entre mim e W., muito amigos que éramos. Durante a exibição, ela segurou minha mão e trocamos algum carinho com leves apertos mútuos de dedo quase o filme todo. Pela primeira vez, senti alguma malícia no gesto e, na mesma hora, me repreendi.

Então, percebi que estava numa armadilha, num beco sem saída. Quando as luzes acenderam, prometi a mim que me manteria o mais longe possível da situação, numa distância segura, sem deixar de pensar que o amor nasce quase sempre nas piores brechas possíveis, como flores no asfalto.

Mas, esse tipo de promessa é difícil de cumprir. Quem viveu sabe.

Como previra, numa noite qualquer, ela me ligou. Chorava desconsolada, de soluçar, trêmula, a voz sufocada. Não dava mais, terminamos, ela lamentou pelo telefone. Minutos depois, meu aparelho tocou de novo. Atendi. E era ele. O mesmo tom de voz triste, a mesma informação, dessa vez sem lágrimas ou soluços: não dava mais, ela terminou. Nas duas consultas, fui que o que um bom amigo deve ser entreguei meu melhor conselho aos dois, nas duas chamadas. Pequenas variações nas frases, mas o sentido era o mesmo:

– Parem de frescura, que amanhã vocês estão juntos de novo. Logo se acertam. E se não se acertarem, paciência. Segue o baile. Ninguém morre de amor faz, mais ou menos, uns cem anos.

Não voltaram, também como eu imaginei e torci cheio de remorso. Depois da notícia, vislumbrei que, talvez, uns seis meses depois, ela e eu poderíamos nos olhar com amor e desejo sem culpas e nos permitir extravasar o que estava reprimido e andava por nossa cabeça já havia algum tempo. Esperaria o tempo que fosse, como um Florentino Ariza, até que cessasse o julgamento social e pudéssemos gozar daquele sentimento que já me corroía.

Menos de um mês depois, ela me convidou para conhecer a sua casa, em um condomínio popular, na Augusto Montenegro, na entrada de Icoaraci. A desculpa eu nem me lembro, porém, aceitei e corri até lá depois de um dia extenuante de trabalho no jornal.

Cheguei com nuvens pretas sob a cabeça, minhas pernas tremiam, como se estivessem prestes a cometer um crime e havia uma pressão no peito que não passava, que acharia facilmente ser um princípio de infarto, caso ocorresse agora na idade que tenho. Quando abriu a porta e pulou no meu pescoço para me cumprimentar com seu pouco mais de um metro e meio, percebi que não havia mais volta. Estava de roupas caseiras: short, camiseta, sem maquiagem, sem perfume, natural, talvez para não admitir a si que esperava aquele evento há muito tempo, como eu também ansiava. Fizemos o que mais sabíamos fazer quando juntos: conversamos por horas.

Quando deu quase onze da noite, sem jeito e coragem para fazer nada, decidi que estava tarde e pedi para que ela me deixasse no térreo pra gente se despedir. Pegou o guarda-chuva preto da mãe e me entregou. Não vai adoecer, por favor, essas coisas que diz toda mulher. Descemos com o toró no auge. O vento fazia os vãos dos blocos de prédios rugirem, como uma plateia que me julgava e xingava naquele desfecho. Olhei a tempestade e o chão da garagem quase inundado a molhar os meus sapatos e ela tomou a iniciativa diante da minha reticência.

Um beijo, o barulho da chuva, o silêncio.

Tudo caiu como uma bomba. Mas, só viria a explodir quase um mês depois, quando ela, por iniciativa própria e sem esperar como eu havia pedido insistentemente, contou a W. o que havia acontecido. A consciência dele sobre o que houve resultou na conversa mais constrangedora que jamais tive com alguém. Uma confissão de culpa diante do meu imaculado melhor amigo, agora ferido pelo que todos consideraram uma puta sacanagem da minha parte, traição imperdoável.

Eram visíveis a decepção e o ódio no rosto, nos punhos, na tensão de W., na fala travada e baixa, tudo barrado graças a uma natureza não-violenta. Gerou um transtorno tão grande nele, que o recém transmutado em ex-amigo ferido na alma invocou heterônimos criados por ele mesmo para fazer o que não conseguia por si: me esculhambar, me xingar e expor minha perfídia e minha personalidade controversa naquele episódio machadiano/rodrigueano que nos marcou naquele início de 2004. Foi uma perda imensa pra mim.

O fim da história já antecipei. Acabou de forma melancólica numa praça de alimentação de shopping com um casal apático e exaurido de amores, duas pessoas que se quiseram tanto e nunca mais seriam amigos na vida, como chegaram a ser antes, e os três personagens fadados a seguirem o próprio caminho, cada um na sua, até que esse enredo fosse enterrado de vez, perdesse o sentido e estivesse quase esquecido como um livro velho em um depósito de memórias batidas no fundo de um baú antigo.

Até que o juvenil Vitão apareceu para lembrar que ninguém está imune diante do impulso que faz nos faz humanos e a vida é imprevisível.


(Vá ouvir a Divina Comédia Humana)


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