Rugas

Arquivo pessoal.

O choro rebenta no parto.

O velho alquebra, lasso.

Estrondo, silêncio.

Tiro certo, passo em falso.

Folia, Páscoa, São João.

No Whatsapp: má notícia do irmão.

Um conhecido morre,

um amigo casa.

Uns se vão, criam asa.

Pelos brancos nas narinas.

Vermelha, menarca, menina.

Muda-se de carro,

de casa, de roupa.

A vida, alto e baixo,

Acaso e sina.

No poema: prosa;

fim de rima.

Um doente na UTI

e um são de volta à boemia.

Flores murcham, piora o tráfego.

É meu aniversário, ansiedade de festa.

Envelheço sem retorno: rugas na testa.

Natal, ano novo, lusco-fusco.

Giro o mundo, de Berlim à Belém,

No fundo, quero meu velho quarto.

Não há para onde voltar.

Não há infinito que me caiba,

Nem colo que me abrigue.

No caminho, um enterro,

Uma explosão, uma algazarra, uma algaravia.

E olhos melífluos, diáfanos, análogos à escravidão.

Lábios, pequenos e grandes, a me abocanhar.

Saudades incuráveis, palavras inauditas,

Paixões à distância, amores encruados,

Impossíveis e estirados à luz de um sol tropical.

Nenhuma lágrima às claras, nenhum drama às escuras,

Apenas a estrada e o todo enfiado numa mala de mão.

A dor nas juntas, os dedos duros, tesos,

diabetes, trombose, cancro, verrugas,

problemas do coração,

(Os de sempre: desatino, desamor, solidão.)

A casa imensa, sem filhos.

O tempo de sobra, a saudade na mordaça.

É fevereiro de novo e setembro me abraça.

Outro livro morre esquecido no Google Drive,

mais um romance mal escrito, outra crônica ignorada,

um poeta (óbvio em tudo) enlouquece,

um best seller compra uma casa no subúrbio de Paris,

condomínios de traças na estante, uma praia de mofo nas capas de couro

e um céu esverdeado de nódoas nas páginas amarelas.

Casam-se noivos, de novo,

desfazem-se pares, lotam motéis,

esvaziam altares, encruzilhadas, terreiros.

Traições, divórcios, partilhas.

Na zona saem as mães, entram as filhas.

Os bares fecham para sempre,

novas farmácias iluminadas,

a cidade apodrece à distância.

Dentro de casa, uma vergonha do tremor nas mãos,

da audição atrabiliária e do rosto devastado de vincos.

Um frio permanente, a manta sobre os ombros e a xícara de café amargo.

Será se fechei a janela?

Uma voz me chama na cozinha: ninguém.

Não é o Paulo Fruteiro passando na rua?

Morreu em 2006.

As manchas nas costas das mãos na máquina de costura,

Os joanetes dos pés fora da rede de punho estourado.

A fila do banco, o cenho franzido,

aposentadoria nunca mais, subida no ônibus pela frente.

É insônia de noite, nenhum sono de dia,

O arrasto da tarde e da madrugada.

Aparar os pelos da cara,

Podar paixões olvidadas,

Perder amizades natimortas,

Abraçar os amores senis.

Um casarão centenário se arruína.

Jovens casais, sacadas gourmet,

boletos e mais boletos até o fim,

em um final de março ou começo de outubro.

Fotos no Iphone,

Superlikes no Tinder,

uma viagem inútil te enche de orgulho fingido,

uma cama vazia, a cabeça cheia, a alma devastada.

Uma caixa do supermercado ama calada.

Um contador berra de ódio no vão da escada.

Um motorista planeja matar e morrer.

Uma freira sonha em ser livre.

Um louco balbucia no trem,

Uma médica descobre a cura da aids.

Uma criança olha as estrelas,

Um velho morre sozinho.

Não envio o e-mail desaforado,

Não entrego a carta de amor,

Desisto de vez do poema,

Acho de vez o caminho.

A multidão me engole,

a imensidão me arrebata,

a morte me espreita

e a vida me leva.

Para sempre.

(Vá ouvir Que Pasara Mañana ou Quando Chegar o Amanhã)


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