
Já faz um ano, meu amigo. Ainda te lembras? A aflição das malas, as horas anteriores em um quarto de hotel em São Paulo, a madrugada fria na saída do aeroporto, o corpo entorpecido pelo ar viciado do avião em mais de dez horas de voo, os pulmões invadidos pelo ar novo no novo país.
Mas, nem é isso.
Destas coisas sei que não te esqueces. Te conheço há muito tempo. Sei que a memória já não anda lá muito boa, mas ainda impressiona pela captação de detalhes inúteis. Sei, por exemplo, que recordas da cara do taxista e do valor da corrida até a Estação Oriente — depois descobriste que de metro (sem acento circunflexo) seria muito mais em conta. Um primeiro ódio amalgamado no teu novo lugar.
Sei da tua insônia e do teu desconforto no banco de autocarro, como eles gostam de chamar os ônibus por aí/aqui. Um homem enorme e gordo veio entalado no assento detrás a pressionar o encosto da frente. Encolhido, amaldiçoavas a viagem. Talvez a maldição traga consequências. Tenha algum cuidado, modere as palavras. É uma recomendação daqui, de onde te escrevo. Vais precisar de alguma paciência e ponderação. Serás mal interpretado tantas vezes quantas forem necessárias para compreenderes que é viajar é preciso. Já a língua, não é precisa, de forma alguma.
Vejo ainda teus olhos cansados na manhã que brotou gelada em Fátima. Lembraste de tua mãe e de tua avó. Dos terços e dos pastores. Da pobre Lúcia e do segredo. Juraste sem fé levá-las ali, na antiga aldeia, hoje um meio de caminho para peregrinos pagãos como tu. O corpo moído se despertou com as luzes da primeira ponte. Estavas lá, finalmente. Chegaste. Em um porto totalmente desconhecido. E a claridade impressionou.
Não sabes dizer bem se foi o gosto do novo, o cheiro de maresia ou os raios solares que provocaram a sensação. Aposto que foi a soma de tudo mais o pavor de nunca ter posto os pés ali e estares, irremediavelmente, sozinho, como planejaste. Destas coisas, eu sei. Daí, meu spoiler pra ti, que nem desconfia ainda.
Conte, enfim, o que já sei. Aprendi aqui da frente a re-ouvir. A repetir histórias. Dia desses, me comoveu um verso que dizia “Repetir, repetir, até ficar diferente. A repetição é um dom do estilo. É um acerto e tanto de Manoel, um Manoel não português e, encantadoramente, brasileiro, como nós. Então, se repita para nós, nós dois. O que posso dizer daqui também já sabes, como já sabes da minha visão realista e um tanto seca sobre os acontecimentos, uma certa indigestão diante da vida e dos fatos, uma acidez ardida pra os que não fazem ideia do coração mole e doce que temos. Acho mesmo que foi aquele poema que comemos ainda no Segundo Grau. Caiu mal, caiu bem, caiu a ficha, graças ao nosso senhor bom deus, que nem cremos.
Então, meu amigo.
Peço notícias e trago presságios do que já passou. Não deve adiantar nada. Mas, isto já é o primeiro deles: nem tudo precisa ser útil, nada será útil.
Não se assuste. Será um ano cheio de manhãs perdidas no escuro do quarto, de semanas inteiras a sonhar com o que não vem, de saudades amanhecidas no fim do dia quando o sol baixa e alaranja o rio, o mesmo que passaste por cima pela ponte. Esqueça a utilidade dos dias, largue de mão as possibilidades da noite, abandone a expectativa nas tardes. Não haverá utilidade que comporte a paz que queres entregar a ti mesmo. Acredite, então, nessa paz do ócio, esse mesmo que como operário não fazias ideia do que era. Descobriste tão longe de casa e sozinho.
Outra coisa: não conte com amores, não conte com amigos, não conte com ninguém. É outro prognóstico que trago: conte somente consigo.
Tenha fé apenas em si. Ah, mas, não aprendeste assim? Pois. Nessa idade, não se aprende quase nada. Está tudo amontoado nessa grande cabeça e nessa caixa torácica maltratada. Vais levar tudo para o caixão com poucos novos itens a acrescentar. No entanto, saiba, o mundo não é coletivista. Vais entender, sem retorno. Não há mãos estendidas, não há ouvidos disponíveis, não há olhos recíprocos, nem bocas que te acalentem. Sabe aquele outro poema? Viverás esses terrores, sem a parte da miséria, porque teu pavor primitivo da primeira pobreza nunca te deixará se arrastar pelas sarjetas. Mas, a solidão, as cervejas, os vinhos, as conversas consigo, o flerte com a loucura estarão lá. Nos frios, amarfanhados e impessoais quartos por onde vai passar, com suas camas duras sem visitas, sem a quentura das paixões, sem o cheiro morno das mulheres, aquele que tanto amas.
Até a desculpa principal para estar nesse lugar será posta à prova. Mas, como se diz na tua terra, nem te bate. Será o de menos. Não importa, no final das contas. Chegaste em um nível perigoso, quando, embora nada saiba e desconfie de tudo, tens certeza de que pouca coisa é nova nesse mundo e quase ninguém tem algo vivo, quente e honesto para oferecer. Sempre que encontras, reconhece. Sempre que reconheces, te enamora. Sempre que te enamoras, ama. Sempre que amas, aprende. Então, deixa estar.
Parece uma visão sombria de 12 meses adiante?
Nada, meu amigo.
Não seja tão ansioso nem apavorado com o futuro. A inutilidade, a solidão e o desencanto não são um Adamastor no meio desse mar que te separa muito mais do que inventaste do que realmente tu amas. Até mesmo porque sempre conviveste com eles e nunca reclamaste. Construíste casas, passastes por túneis, presenteaste as mulheres, escreveste livros, constaste mentiras, encontraste verdades, viajaste para os cafundós e te perdestes nas grandes metrópoles, sempre no meio desse caos todo. A vida é isto, como já dissemos.
Vais ver lindas paisagens, ouvir muitos sotaques, provar novos sabores, embriagar-se em demasia, cantar com alguma força, dançar a sós, arrepender-se, seguir adiante, retroceder, desistir, enlouquecer, encontrar sanidade no silêncio, ver o mar, ah, o mar, sentir o cheiro suave do rio e praguejar a ventania do Norte. Vais ver as praias no escuro e as luzes de mercúrio.
Vais olhar no espelho, em definitivo, e ver que não és igual a essa gente que encontraste. Eles não vão também te reconhecer. Virarão às costas, a maioria. As rugas, os dentes manchados de vinho e café e entortado pelos anos, os cabelos negros resistentes com quase nenhum fio branco, a barba pouco espessa, os olhos de índio. Vais te saber à força, inteiro, e gargalhar.
No meio da tez clara da filhas de madame, dos alvos cabelos da rapaziada bem nascida, dos privilegiados de sempre, saberás: aqui não é meu lugar. Ao mesmo tempo, que terás certeza de que teu lugar é onde quiseres e eles, bom, eles que lutem e se meçam pela tua impressionante história de quem não fez nada além do que sobreviver, sem nenhuma noção do que fazer, mas com alguma intuição, o que garantiu mais de quatro décadas a salvo. Eles que engulam tua única, bonita e viçosa qualidade, porque a essa altura não nos cabe mais nenhuma modéstia.
Pois, meu chapa.
Encontre a primeira casa, está logo ali. O quartinho é essa coisa mesmo, não esmoreça. Desfaça a bagagem. A viagem começou e não tem mais volta. Agora é viver. É o que te resta. Segure as próprias mãos nas noites de frio, vá contemplar o sol nos dias de calor. Ande pelas ruas estreitas, suba ladeiras, embarque nos trens, contemple os abismos. Leia o que for preciso, durma quando tiver vontade, coma e beba ao sabor da fome e da sede. Estás só e só viverás. No entanto, não há de ser nada.
Vai ser bom, acredite.
Te encontro daqui a um ano na Ponte Dom Luiz para ver o sol se pôr e saber se, daí, recebeste esta carta.
Um abraço, que é o que te faz falta.
(Vá ouvir Easy)
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