Estava dito e não voltaria atrás: compraria um computador. Não que quisesse, de fato; não que fosse da minha vontade espontânea; uma necessidade, assim, premente, das verdadeiras. Porém, minha artrite já apitava e o manuseio da minha Royal era cada vez mais difícil, sofrido. Empregava uma força enorme para escrever. Em particular, as teclas O, R e S estavam emperradas além do normal. Nem o óleo Singer dava jeito.
Fora que a máquina, única herança do meu bisa paleógrafo viciado em livros, dava impressão de museu à minha mesa de trabalho. Pouca gente acreditava que ainda escrevia naquela obsolência, um uivo do século passado naquele canto. Ela era uma das descrentes. Invadia a casa, jogava a bolsa no sofá, tirava os sapatos e a calça jeans e perdia o tempo apertando as teclas. Só de calcinha. Tchec, tchec, tchec, tchec. Era bonito de ver.
Do alto da inocência, só cria que a Royal jorrava palavras por enxergar os caracteres impressos na folha A4 e já ter visto sair, quentinhos, pequenos poemas de sacanagem feitos para ela ao vivo. Ficava encantada. Nem tanto pelo resultado poético, chinfrim sempre, mas pelos tentáculos saltando da caixa para atacar o branco do papel com aquele barulho assustador que lembrava um trem desgovernado quando eu queria me exibir. Tchec-tchec, Tchec-tchec, Tchec-tchec-tchec, tchec.
Vem o amor suave e em brasa,
em ondas tenras, ternas,
na tua invasão de minha casa,
no teu abrir das tuas pernas.
Eram notas duvidosas que a Royal cuspia sob meu comando e ela adorava. A máquina impunha proximidade lúdica entre nós, no entanto, acirrava nossa distância temporal. Era como se aquela pós-adolescente entrasse na câmara do tempo para espiar, em outra época, um ancião manipular um antiquíssimo cinematógrafo. Ou pior: uma menina olhando um macaco acionar o realejo nas ruas iluminadas com lamparinas, nas quermesses de outrora. Dava no mesmo.
Para espantar os fantasmas da sala/museu, da artrite, da minha caducidade e do vicejo dela, levantei cedinho, como nunca faço. Prefiro sempre acordar tarde. É mais uma tática para driblar os sinais do tempo, afinal, o velho clássico, o convencional, acorda com as galinhas. Ficar procrastinando na cama também evita a fila da padaria, que detesto. Não pela espera em pé em si, mas porque sempre tem alguém que puxa assunto nas primeiras horas do dia, o período que, para mim, emitir ou ouvir qualquer tipo som ou ruído é o mesmo que um tiro na cara.
Contrariado, o sol a cravar as agulhas de luz nos meus olhos, ganhei a rua. A pé mesmo. A cara inchada, moído. Andei uns cinco minutos na umidade da manhã a empapar meus cabelos. Nada de dar oito horas. Peguei um ônibus errado de propósito. Percebi que ia lotar e saltei antes. Aglomerados de desconhecidos me deprimem. De conhecidos também. Contudo os com estranhos são muito piores. Continuei a caminhar. Dei 50 paus a uma mendiga. Ela olhou o dinheiro e não acreditou. Olhei para trás e ela rasgou o cédula, me xingou. Acontece. A vida é tão sórdida que, se algo bom surge, a gente não reconhece de imediato. Quase sempre não é possível remendar a nota. Quase sempre não dá para voltar atrás. Azar o dela. Azar o nosso.
Cheguei ao destino. De fora, parecia uma corporação importante, onde o futuro do mundo é definido ou determinam a morte de líderes que se opõem ao establishment ou fazem experiência com indigentes ou qualquer população vulnerável para descobrir o efeito de novas drogas. Muito vidro, muito reflexo, muito século XXI. Horrível. Entrei. No elevador, uma mulher bonita mexia no celular e ria, ria um riso bonito, daqueles com rugas ao redor dos olhos, complacente com a concupiscência do outro lado da linha, com quem quer que fosse. Ao se perceber observada, endireitou-se e me fustigou com lindos olhos cor de mel. Fechou a cara e se assemelhou àquelas meninas que cobriam os peitos com o caderno quando passavam por mim na escola, nos anos que já não voltam. As ruguinhas se acalmaram. Perdeu toda a graça.
No interior, aquela bugiganga toda. Umas televisões imensas ocupavam paredes inteiras. O sujeito só assiste novela e futebol e compra um televisor daquele tamanho. Pra que? O pior com óculos em 3D. Namorados diante de comédias românticas em 3D; crianças diante de animações em 3D; tias velhas diante de filme de cachorro-herói em 3D; a família toda diante do Tarcísio Meira em 3D. O Tarcísio ainda estava vivo? A última vez que o vi foi como o Capitão Rodrigo em O tempo e o vento. Em outras prateleiras, máquinas fotográficas. Muitas delas. Algumas rosas, outras a 20 mil. Algumas rosas a 20 mil. O que uma máquina fotográfica de 20 mil pode fazer de tão extraordinário para custar 20 mil? Para que fabricar uma máquina fotográfica rosa? As pessoas gastam dinheiro com todo esse aparato. Algumas vendem a alma e se endividam para obter os objetos. Meu Deus, para que? Deixei de lado as inutilidades. Já estava irritado. O consumo me cansa, quem consome me cansa.
As vendedoras zanzavam. Não, não. Elas não zanzavam. Desfilavam. Em terninhos pretos. Compenetradas nas rotas determinadas por um gerente que devia ter escolhido uma a uma por capacidade estética, ou seja, pela gostosura. Um assediador contumaz, de certo. Elas eram inacreditáveis. Se eu não tivesse certeza do lugar que estava, pensaria que estava em uma casa de acompanhantes de luxo ou em um set de filmes pornôs de tão lindas que eram as funcionárias. Fiquei ali abandonado, o ar refrigerado a secar o suor do meu pescoço. Olhei minhas ridículas meias. Logo diante daquelas trabalhadoras de sonho percebi que estava escarrado e cuspido os velhos que abomino: camisa polo, bermuda e tênis com meia. Não, por sorte não era no meio da canela. Limpei os óculos e uma moça se aproximou, sorrindo.
Posso ajudar?
Era tão bonita que me senti intimidado. Loira, olhos verdes, seios médios, alguma sarda, cintura de pilão. Alguém ainda olha para uma mulher e pensa em um pilão? Alguém ainda sabe o que é um pilão? O que importa que ela tinha uma cintura estreita e ancas, ancas, ancas. Nenhuma tintura nos fios dourados, como uma catarinense. Branca e operária. A cara de quem brincou em playgrounds na infância. Alguma coisa deu errada entre a área de lazer do prédio do passado e o emprego de merda atual, pensei.
Claro, claro, quero um computador, respondi. O senhor já sabe qual configuração, retrucou a miss informática. Como? Não entendi. Então, ela começou a disparar: o senhor quer um PC de mesa, um notebook, um tablet? Já escolheu a marca? Quanto de memória RAM o senhor precisa? Qual o espaço do HD? Tem preferência para processador? Prefere MAC, Windows? Tem intimidade com o Linux?
Achei engraçado ela falar intimidade bem na hora em que observava o movimento da língua dela dentro da boca. Intimidade com Linux. No da de intimidade ela abriu um pouco mais a cavidade bucal e no li de Linux a ponta rosa se pronunciou, tímida, entre os dentes brancos. Nenhuma intimidade entre nós. Pura linguagem técnica. Nenhuma intimidade com o Linux, respondi. Quem era Linux? Ela mencionou uma série de especificações sem nenhum interesse, apenas papagaiando, repetindo, como uma criança que acabou de decorar a tabuada de sete. Perguntei o preço de uma configuração básica. Sou aposentado, minha filha, apenas escrevo. Só quero escrever. Não precisa ser nada complicado. Não precisa fazer mágica nem soltar fogos. Só quero bater no teclado e ver o texto na tela, expliquei. Vou precisar de uma impressora também. Eu gosto de papel, gosto de árvores derrubadas para fazer as remas, para registrar a evolução da humanidade, as carências da civilização. Derrubem as árvores para imprimir histórias. As grandes, as pequenas, as medíocres, as que mudaram tudo. As árvores são para isso e não para serem abraçadas ou defendias por gente que não toma banho para não estragar a água dos rios. Mas, tudo isso eu só pensei. Me contive.
Apesar da simplicidade da explicação, a modelo-manequim-atriz-vendedora me informou que o conceito de básico era muito amplo. Quase uma filósofa. Era necessário, de verdade, ter uma referência, uma noção do que eu queria para não comprar errado, adquirir o produto dentro das minhas expectativas, das minhas necessidades específicas. No ci de específicas a língua se mostrou novamente. Tive um flash pornográfico envolvendo a cor rosa do ceceio discreto dela e da máquina fotográfica de 20 mil. Falou tudo sorrindo, um sorrisinho falso de quem não tem mais nenhuma paciência nem tempo a perder.
Fui vencido. Não entendia nada de configurações. Sai de casa com uma pequena fortuna no bolso e nenhuma informação do que queria comprar. Sou do tempo em que para comprar alguma coisa bastava entrar, pedir e pagar. Os tempos eram outros. Comuniquei à atendente sobre minha confusão e prometi voltar outro dia. Ela agradeceu com um volte sempre que mal escondia sua impressão sobre mim: um velho sem dinheiro e ignorante que preferia lojas de informática a filas de bancos para perturbar as pessoas.
Peguei um táxi e em pouco tempo estava em casa, com a Royal. O meu museu particular cuja peça mais estranha era eu mesmo. Fui até o espelho e olhei minhas rugas. Minhas sobrancelhas tinham mais pelo do que o normal e as pálpebras começavam a queda livre puxadas para baixo pelo peso dos anos. Despencavam vertiginosamente. Os cabelos resistiam, na cor preta inclusive. Alguma vantagem minha ascendência de índio bravo deveria ter e estavam ali naquela cabeleira. Bateram na porta. Fui atender e ela passou por mim, sem dizer nada. Jogou a bolsa no sofá. Resmungou alguma coisa como estou morta de fome. Tirou a calça e foi batucar a máquina. Tchec-tchec-tchec-tchec.
Pus os óculos, pedi licença e manuseei o realejo que cabia a um macaco da minha idade, com ela encostada ao meu lado, com as coxas resvalando meu braço direito, o cheiro do sexo recém ababado pelo jeans e agora, livre. Olhei o papel por cima do pincenê e disparei, como um comboio sem rumo noite adentro, no pouco trilho que ainda me restava. Tchec-tchec-tchec, tchec-tchec, Tchec-tchec-tchec…
Abunda o perfume à fria cama
ao ardume de teu ventre.
Ao rever-te o peito inflama
Em chama vaporosa,
No átimo do tempo nosso.
Sem rima, que lindo, ela elogiou e me beijou, me lambuzou e continuou sôfrega, pernas escanchadas em meu colo feito uma amazona.
Quem precisa de computador, afinal, não é?
(Vá ouvir Trovoa)
(Texto com pequenas adaptações do conto originalmente publicado no meu livro Bêbado Gonzo e outras histórias, de 2013).