Não fixo, não guardo, não trago dinheiro, tenho só a roupa do corpo e um punhado de sonhos pequenos, enterrados no canto do olho, que já enxerga a próxima viagem.
Não tomo assento, não compro móveis, não leio jornais, não mordo a isca, não me demoro na cama, não faço sala, mas falo em saudade quando já me encontro distante a tomar atalho fora da linha das mãos.
Meu coração tirano é água e pedra, torrente e ventania, nau e mar, folhas secas soltas na bruma de outono, um gato negro no telhado, um uivo de vira-lata no escuro, um estalo de quebra de galho ressequido, um relâmpago na praia, um caminho estreito até o mar à noite.
Não se despeça, não chore, não meça, não faça alarde, não core, não se pendure, não se demore, não se arvore, que escorro pra qualquer lugar, em qualquer colo, em qualquer vão, qualquer catre, esteira ou chão batido, batidas do meu peito vão. Deixo o banco vazio e os dobrões no balcão do bar e porta de folhas duplas a balançar.
Se quiser me agradar, me faça um poema, esqueça em meu bolso, me beije, não diga adeus, me aqueça, me esqueça, deixe pra trás escondido, olvidado, num buraco de tijolo, no pé de uma árvore, na toca de um rato, que encontro as palavras na próxima paragem.
Não me faça promessas, não assine papéis, não me trate como filho, não me queira como pai, não me veja como irmão, nem me jure eternidade ou me acene com alguma migalha do que eles chamam felicidade. Não me convide para igrejas, cartórios, salões, cemitérios, reuniões. Não quero, não vou, não aceito, recuso, fujo na hora.
Eu sou o estranho do outro lado da rua, debaixo de chuva, numa madrugada de lua nova. Eu chovo só, corro só, morro só, me abrigo ensopado em mim mesmo e renasço enxuto de manhã para continuar andarilho, rastilho de pólvora que sou.
Não me segure, que não fico. Não me solte que vou de qualquer jeito. Meto o peito no mundo, exponho a cara ao sol e à poeira, enfio os pés pelas mãos, salto no escuro, mas vou. Vou, sim. Tenho vício em ir, tenho prazer em não ficar, tenho ânsia em não permanecer, tenho gosto pelo cheiro de novas paisagens e cuíra por um novo lugar — e, se não sabe o que é cuíra, nem me dou trabalho de dizer.
Não me amarre que nasci pra desatar nós de marinheiro, cortar cordas com os dentes, desfazer em lavas as correntes, partir e repartir e parir um novo plano a cada sinal de inércia.
Mas, não se ressinta, não me queira mal. Não me tenha como doido ou diga que me falta coração.
Quando me vir na estrada, me acene, me chame, me queira, me acolha, me ache, me ofereça um abraço, um copo, o corpo, os ouvidos, a sombra, o fogo do ventre. Não tenho nada, só alguma pressa, mas sei contar histórias ou ficar calado sem me incomodar com o silêncio que vem do outro lado.
É possível, assim, que a lembrança me force a voltar, que minhas pernas cansadas me obriguem a mudar o ritmo e o rumo. Mas, não conte com meu retorno. Não garanto nada. Meu ir é adiante e livre, minha única constância.
Se quiser ser algo, seja o pedaço da viagem que guardarei até o fim, a lembrança que levarei na carteira de couro envelhecida, o retrato amarelado na parede de uma casa que jamais será minha, a visão no fundo do meu olhar perdido por trás do alo azul da minha catarata.
Seja o oásis, a tenda, o idílio, a miragem, mesmo se me souber deserto, apesar de me reconhecer nômade, essa impermanência viva, aqueles viajantes que não esquentam o leito, não ficam para o café, nem se despedem no portão.
Aprendi desse modo, saio sem barulho para que o anfitrião não acorde, não perca o sono dos justos, nem verta lágrima nem lance suspiros.
É duro, me perdoe, mas a vida é essa e não outra.
Não tenho muitas desculpas, nem rodeios ou remédios pra esse mal sem cura.
No fim, é isto mesmo.
Estou, está, estamos, sempre de passagem.
(Vá ouvir os Argonautas)
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