
Venho de outro país, que não o Brasil.
Não, não descolei nacionalidade portuguesa em 300 dias por cá, nem nego minhas raízes brasílicas.
Só constato que minha origem é outra, onde o caribe tem seu porto de mar, como na canção.
Para ver a ilha é preciso sair da ilha, o velho português me disse. Segui o conselho em um dia de sol castigante. Estava em Mafra, a ex-mulher quase morta dentro do carro alugado, eu diante do convento que a literatura me obrigou a ver de perto , fascinado— sim, livros são imperativos e te ordenam a fazer coisas tolas como viajar pra ver um prédio velho na putaqueopariu.
Saí da ilha, que, na verdade, é uma península, mas já havia saído fazia tempo, uns cinco anos, quando fui parar no velho oeste na Terra do meio. De caubóis, peões, rios imensos, estradas sem fim, caciques, freiras, grileiros, posseiros, fazendeiros, engenheiros, conflitos e poeira. Quanta poeira, meu deus. Engoli tanta que faltei cagar tijolos, se é que não caguei. Por lá, descasei e joguei, investi, desisti. Sou caipira, Altamira nossa, que viagem infindável, se há sorte, eu não sei, nunca vi. Foi uma aventura daquelas, mas, cansou, como tudo cansa.
Voltei à ilha com um saco de dinheiro e desamor no coração só pelo gosto de partir de novo. Pra mais longe, pra ver a ilha do tamanho de um caroço de acaí.
Atravessei o oceano e a vi em plenitude. Era horrível e linda. Generosa e mesquinha. Algodão e navalha. Carícia e pedrada. Fortuna e revés. Vida e morte.
Olhei-a num microscópio (ou seria um astrolábio?) e admiti: nasci nesse pedaço de fim de mundo, no meio do mato, na beira do rio, índio cara pálida, cara de índio, graças a deus. E olha que nem sou de acreditar em metafísica, mas nesses assuntos geográficos é melhor não arriscar.
De longe, à beira de outro rio, confirmei, que vivi fora a vida toda. Ou melhor, dentro. Dentro demais. Numa profundidade que pouca gente alcança e, de tão funda, de tão encruada, embrenhada, escapa e muito do que é o Brasil.
No outro lado do mundo é tudo diferente, irmão. Lá dentro também, mais ainda. É o que as amostras de brasis aqui me lembram todo dia. Ainda somos, na solidão da mata escura do Norte, uma etnia isolada a atirar flechas nos bimotores.

Caras, falas, fases, gestos. Festas, sestas, frases, beijos. Danças, transas, mantras, jeito. É tudo outro, é tudo o que ninguém compreende fora da nossa temperatura, da nossa chuva de todo dia, da nossa alegria desconfiada e agressivamente escrachada, da nossa fúria e ressentimento por seremos isolados, do nosso despacho com tudo, da língua que é outra, nasal e tupinambá, como os nossos olhos rasgados, como nossos lisos cabelos e como nossa tez vermelha de sol inclemente.
Os outros são os outros, no final das contas. Pouca coisa nos unes, pouca coisa nos integra. Ainda estamos de costas para eles ou, melhor, eles estão de costas para nós, que somos farol, embora nos embaralhe os sinais: não sabem quem somos, não entendem nossas referências e nossa ginga, e, como num espelho, imitamos os movimentos e repetimos esse desconhecimento ancestral.
Fingimos, então, que não nos vemos. E fingimos tão bem que, deveras, deixamos de saber quem somos. Já não nos olhamos nos espelhos que nos deram lá em 1500 para evitar entender, de vez, que não somos daquela malta, diriam aqui no outro Norte em que me encontro.
No entanto, quem precisa de espelho quando se tem um rio que é maior que o mar e reflete exatamente a cor de barro que carregamos?
É preciso quebrar o espelho, é preciso sair da ilha, para enxergar além do Guamá e da Ilha das Onças. Abandonar a Baiá do Marajó e entrar no mar, atravessar o mar.
Só assim se descobre o óbvio que ninguém enxerga por estar tão entranhado em nossas ventas. Não somos brasileiros, somos de outro país, ainda por ser descoberto por nós mesmos, numa porção de terra cercada por desconhecimento, preconceito e medo do novo por todos os lados.
Sem ufanismos, sem paixões cegas, somos a novidade vista com desprezo, compaixão e ignorância por um Brasil que não faz questão de saber o que é, nem o que tem.
Saber de tudo isso é, antes de tudo, um choque. E depois, um alívio. E mais tarde, um bálsamo.
Tudo tem seu preço, meu amigo: sair da ilha para ver a ilha e nunca mais voltar a vê-la como antes.
Ai, ai, ai, ai, adeus, Belém do Pará.
(Vá ouvir Peguei um ita no Norte).