Equilíbrio

Foto: Steve Simon

Ela entrou de rabo de cavalo e uniforme no ônibus da empresa. Era gerente de alguma coisa sem importância alguma pra mim. Me ajeitei no assento, meu mau humor arredou. Mal dava pra ver as formas, mas, os olhos, ah, os olhos, eles estavam lá, e um pescoço longo e delicado. Castanhos cabelos e um nariz puxando meio pra baixo, pra provar que as imperfeições tornam a beleza seja real. Falou com certa fleuma, como quem quer acabar logo, mas firme, exalou inteligência. A plateia, pouco interessada, olhava pela janela, a terra vermelha de bauxita, estruturas de aço, caminhões gigantes, homens uniformizados sem rosto, exceto por mim.

Cruzou com minha atenção reforçada e repousou o olhar em mim. Vazio, me atravessou, nem me viu, homem comum dissolvido entre outros homens comuns da indústria. Abstraí o assunto e me concentrei na figura e no som da voz, no movimento das mãos e no equilíbrio a muito custo, nos músculos das pernas a segurarem a performance. Presença familiar, memória engatilhada, embaralhada, som oco, retrato em sépia, peça perdida, híbrida entre o que eu sei e não sei, lembro e invento.

Eu a tinha visto numa sessão do Circuito Cinearte há muitos anos, ainda adolescente, cruzado com ela nas escadarias da biblioteca do Centur, macilento moleque, trombado pelas passarelas recobertas de amianto pelo campus básico da UFPA, já universitário faminto, enxergado de relance numa peça de teatro no Schivazapa, adulto rebelde em fúria, admirado nas sombras das mangueiras da Praça da República, trabalhador cansado de folga num domingo, observado mudo numa parada de ônibus em Belém da Marquês de Herval de manhãzinha, cidadão deprimido, no metrô de Madri, turista rico e ocupado, num ruela da Baixa do Porto cheia de sacolas e sorrisos, imigrante perdido e sozinho num futuro próximo, num sonho confuso e chuvoso com dezenas de pedaços de cidades mal remendados, a vida toda.

Ela parecia aquelas moças que a gente se apaixona no primeiro dia de aula nos primeiros erros e elas passam o ano inteiro a ensinar o que sabem fazer de melhor: ignorar. Com elas aprendemos sobre desprezo, frustração, irrealidades, maus poemas e olhar para o lado e além e seguir. Imaginei-a numa manhã de sol, um vestido azul, largo sorriso, uma gargalhada estrepitosa, uma viagem pro interior do Uruguai, outra pra Mosqueiro num dia de semana, um almoço de domingo no quintal, ela adormecida no meio de um filme numa sexta em casa, uma briga besta, uma reconciliação num quarto abafado, a textura das mãos, o cheiro de shampoo, uma canção pra dividir, um prato de sopa antes de dormir, uma conversa longa no escuro a ouvir aquele sotaque mineiro, o ventre cotejante em minhas mãos, o esfincter a apertar meus nervos, os ciúmes amargos na boca, o gosto e o cheiro dos líquidos dela na minha barba, os ódios ancestrais de minha futura sogra, as intolerâncias racistas para comigo do meu futuro sogro, os boletos se acumulando, aluguel, parcela de carro, fatura do cartão, caminhões de mudança, bicicletas enferrujada, sapatos largados num canto do quarto, garrafas de vinho em fileiras, goles de cerveja quente, a falta de jeito pra dançar num salão de um bar quase vazio com um globo espelhado e as luzes a piscar, o cabelo sendo colocado atrás das lindas orelhas, os óculos de leitura nos dias de ler, o beijo de bom dia, os amantes secretos, as confidências que nunca desconfiaria, os ódios mofados na sala de estar, a assinatura do divórcio. Um solavanco. Parou, de repente.

Nem deu tempo de avisar quais seriam os nomes dos nossos sete filhos: desceu sem deixar nem o rastro com uma pilha de documentos encadernados nas mãos e entrou nas salinha de lata pré-fabricadas.

(Vá ouvir When a man loves woman)

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