
Não existe ateu quando a santa passa e a multidão ergue as mãos. Minúscula, ornada de flores, puxadas por brutos ensopados de suor e lágrimas.
Repare quando a santa passar.
À tua vista terá sempre uma senhorinha de óculos, pele morena, terço em uma mão, ventarola na outra. A testa franzida contra o sol, o pescoço espichado, miudinha, os olhos inundados.
Ela está ali porque a mãe a levou num domingo de outubro que ela nem se lembra mais. Pequena ainda. E sua mãe foi levada por sua avó e sua avó por sua bisavó e sua bisavó pela trisavó, que também viu aquela santa quando era uma caboquinha, gitinha. Uma linhagem ancestral de senhorinhas com esse mesmo rosto comovido e agradecido ao longo do tempo. Mais de 200 anos. Isto para não dizer que sempre estiveram ali, quando o lugar era só uma aldeia e a adoração eram para as divindades da mata, dos rios e do sol.
Repare, olhe pro lado.
Elas estão lá, de mãos levantadas. Crédulas, como nenhum de nós consegue mais. Humildes, como nossa pretensa erudição não permite mais. Vulneráveis à magia, como um dia já fomos e por tanto desalento esquecemos de ser.
Choram as senhorinhas, porque nelas, apesar do rosto vincado e dos cabelos já cinzas, moram as crianças que elas foram, as que foram levadas pelas mãos por suas mães para ver a santa num domingo imemorial.
É delas que brota a comoção que a multidão em catarse pranteia.
Não há como fugir do gesto simples de mostrar as palmas das mãos.
Choramos todos com elas. Ateus e não ateus.
Choramos por entender que nelas moram nossa ancestralidade, o que fomos antes e depois e o que seremos nos anos que virão, onde quer que estivermos. Aquelas mãos agarradas ao terço são as mesmas que nos pegaram no colo, nos alimentaram, banharam, surraram, afagaram, empurraram para o mundo. São as mesmas que teremos saudade quando se entrelaçarem pela última vez sobre o peito segurando o mesmo rosário.
É das mãos das senhorinhas que brota a estranha energia, potente e suave, imperceptível a olho nu e brutal no resto dos sentidos, que se dissipa em ondas e se mistura ao vapor, às ladainhas, ao barulho dos passos no asfalto, à algazarra dos pássaros que fogem apavorados.
É a força que move os braços e pernas dos homens e mulheres na corda, a que incendeia a pólvora dos fogos e provoca o estrondo das guerras na Praça dos Estivadores e mantém a calma das crianças vestidas de anjo nos ombros dos pais.
É essa energia que amolece o peito, impõe um nó na garganta e jorra em água e sal pelos olhos quando a santa passa, as mãos se erguem, os estampidos ensurdecem a gente toda e das janelas chove papel picado.
Quando nos damos conta, estamos chorando ao lado dessas senhorinhas. São elas nossas mães e avós, nossas tias e madrinhas, nossas vizinhas, nossas irmãs, que foram ali rezar e agradecer e, sem saber, manter essa multidão coesa, elétrica e viva a caminhar nas espessas nuvens de umidade, fumaça e cheiro de comida por todo lado.
Por mais que passe o tempo e as distância sejam longas, embora do outro lado do mundo, ainda que cidade seja apenas memória, é possível sentir as mãos das senhorinhas erguidas e gratas, seus abanadores, suas caras inconfundíveis, seus sofrimentos curados, suas graças alcançadas, seus olhos puros, que nos fazem chorar junto com elas de empatia, de lembranças, de saudades e por verdadeiramente amá-las.
Repare bem quando a santa passar, elas estão lá. Abrace-as e agradeça por essa presença amorosa, sobrenatural e genuína.